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1 de dez. de 2008

Homo consummus desenfreorus: est Sapiens?


Amigos, no artigo anterior, abordando a virtude da Prudência em Aristóteles, indiquei-lhes um vídeo que já foi assistido e está sendo debatido por milhões de pessoas em todo o mundo. Trata-se de "The story of stuff" (A história das coisas), de Annie Leonard, disponível nesse Blog. Em cerca de 20 minutos, somos instigados a refletir sobre nosso planeta, as pessoas no mundo e, conseqüentemente, sobre nós mesmos, pois somos seres de e em relação. Considerando que um dos principais objetivos dessa coluna é fomentar o Pensar, nada mais adequado.

Minha audaciosa intenção para o artigo desse mês era abordar a questão da "phronesis" em Platão, ou seja, como a Alma conhece e se dá a conhecer. O que é e onde se instala esse reduto, essa instância da psyché que nos possibilita "ver o todo", ponderar, deliberar e, exercendo a liberdade, enfim escolher. Esse tema é inegavelmente relevante e muitíssimo profundo, sobretudo para a base, a fundação de uma Teoria do Conhecimento (epistéme), ponto nevrálgico e bastante discutido na Filosofia.

Mas ponderei: é fim de ano, época de retrospectivas, de balanços de vida, de festas e, inevitavelmente, de consumo desenfreado.

A questão do consumismo, que vislumbra seu ápice sazonal nesse mês, se impôs como foco. Optei então por transcrever pequeno trecho, apropriadamente intitulado: "Tenha somente o necessário" da sapientíssima obra "Sócrates e a Arte de Viver - um guia para a filosofia no cotidiano", de J.C. Ismael, jornalista, escritor, um dos intelectuais mais atentos e iluminados com quem contamos.

"O homem que se conhece verdadeiramente mediante o exame e a prática da virtude está livre da tentação de possuir bens materiais além dos estritamente necessários para viver. Mas aquele que não tem força suficiente para resistir ao desejo de amealhá-los está no caminho oposto da felicidade: quanto mais tem, mais sente vontade de possuir, numa ânsia ilimitada de satisfazer-se sem o conseguir, pois sempre haverá algo novo para comprar, seja-lhe ou não necessário. Uma pessoa assim está em eterna competição com quem ostenta mais, sem pudor de demonstrar a falta de limite para exibir-se perante os outros, como se a posse desmedida de bens fosse a demonstração de superioridade perante eles. Mas essa superioridade é ilusória, constatada por quem algum dia conhecerá a inutilidade da sua ganância, afundando na tristeza que ela lhe trouxe.

Contentar-se com o que possui está entre os mandamentos de viver bem; e, diante das múltiplas ofertas ao seu dispor, alegrar-se por não precisar de nenhuma delas: as coisas indispensáveis são sempre muito poucas. A tentação de possuí-las, porém, pode ser forte, mas quem a ela resiste deve vangloriar-se de ter derrotado esse impulso - o mesmo que o leva a consumir-se em paixões sensuais - , alcançando a vitória sobre si mesmo. O desejo de possuir coisas inúteis faz parte daquilo que a natureza humana tem de misterioso, pois enquanto a razão mostra que elas são desnecessárias, um impulso nascido em tempos imemoriais impele a possuí-las cada vez mais, num processo difícil de ser interrompido.

À obsessão de possuir muitos e quase sempre inúteis bens liga-se naturalmente outra, igualmente prejudicial: a vaidade. Pouca coisa pior pode acontecer a uma pessoa do que ser dominada pela vaidade, a insidiosa inimiga de uma vida virtuosa. Além disso, o vaidoso desconhece a própria ignorância, e sequer se dá ao trabalho de disfarçá-la porque lhe faltam qualidades como a temperança e a sabedoria, sobrando-lhe os defeitos do egoísmo e da importância indevida que se dá. O vaidoso nutre-se das coisas que possui e que exibe na falta de possuir uma importância maior que ilusoriamente pretende ter. O vaidoso não tem amigos verdadeiros porque também não pode sê-lo, pois o que lhe importa é exibir seus bens materiais - que, por consistirem sua razão de viver, são irrelevantes para quem procura no outro uma comunhão espiritual, muito diferente da que o vaidoso pode oferecer".

Àqueles para os quais PIB não é tudo, havendo de se considerar também o FIB (Felicidade Interna Bruta)*, disponibilizei mais trechos dessas preciosas "lições de socratismo" e também uma lista de "luxos que não tem preço", em meu Blog.

Encerro desejando a todos vocês amigos, um luminoso rito de Pax, Felix, que o ano vindouro seja pontilhado de realizações éticas no mundo da práxis e de profícuas reflexões filosóficas aqui, na Carta Forense.

Saiba mais:

Ismael, J.C. - Sócrates e a arte de viver - São Paulo, SP. Editora Ágora, 2004.

(*) Felicidade Interna Bruta (FIB) ou Gross National Happiness (GNH) é um conceito de desenvolvimento social criado em contrapartida ao
Produto Interno Bruto (PIB). O termo foi cunhado pelo rei do Butão Jigme Singye Wangchuck em 1972 em resposta a críticas que diziam que a economia do seu país crescia miseravelmente. Essa declaração assinalou seu compromisso de construir uma economia adaptada à cultura do país, baseada nos valores espirituais budistas. Assim como diversos valores morais, o conceito de Felicidade Interna Bruta é mais facilmente entendido a partir de comparações e exemplos que definido especificamente.

Enquanto os modelos tradicionais de desenvolvimento primam pelo crescimento econômico como objetivo primordial, o conceito de FIB se baseia no princípio de que o verdadeiro desenvolvimento de uma sociedade humana se dá quando o desenvolvimento espiritual e o material acontecem lado a lado, complementando e reforçando um ao outro. Os quatro pilares da FIB são a promoção de desenvolvimento sócio-econômico sustentável e igualitário, a preservação e a promoção de valores culturais, a conservação do meio-ambiente natural e o estabelecimento de boa governança (Fonte Wikipédia).
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3 de nov. de 2008

Prudência em Aristóteles e a questão da sustentabilidade




“a prudência é de longe a primeira condição de felicidade. Nunca se deve cometer impiedade contra os deuses. Os orgulhosos vêem suas grandes palavras pagas pelos grandes golpes da sorte, e é apenas com os anos que aprendem a prudência”. Antígona, Sófocles


Diz um provérbio erudito, que a sabedoria “reina”, mas “não governa”. Quem governa é a ação, a phronêsis platônica; a Prudência aristotélica, o agir deliberado, refletido.

Prudência é a ação ponderada, discutida, examinada, enfim, deliberada. Sim, o Estagirita (Aristóteles é da cidade de Estagira) desenvolveu o conceito de phronêsis legado por Platão e concebeu uma importantíssima teoria geral da ação, uma hermenêutica da existência humana enquanto agente no mundo e sobre o mundo. A phronêsis/Prudênciarecta ratio agibilium – é virtude opinativa da alma: “daí que a Prudentia seja considerada a mãe (genitrix virtutum) e a guia (auriga virtutum) das virtudes”, diz Jean Lauand (FE-USP): “a virtude que realiza as demais”.

A ação prudente é cautelosa, sim. Mas, ao contrário do que pensa o senso comum, Prudência não é morosidade, aliás, não admite perda de tempo. É rápida e certeira pois, o kairós (o tempo, do grego, no sentido de agir bem, no momento certo) é inerente à virtude da Prudência. “Nem antes nem depois”, como Odisseu (Ulisses) orienta a seu filho Telêmaco, na Odisséia Homérica.

Tendo examinado cuidadosa e cautelosamente a questão que se apresente, ao Prudente urge agir de imediato. Mas examina, delibera. Alertando para a importância do kairós adequado à ação justa, o Pensador francês Pierre Aubenque afirma: “Não há justiça, se a decisão é tardia. O momento, o tempo, que permite que a justiça ocorra, é determinado pela Prudência”. Renomado estudioso dessa doutrina em Tomás de Aquino, o prof. Dr. Jean Lauand também atesta: “Na verdade, a prudentia, enquanto virtude da decisão, é a própria base da justiça e a iurisprudentia nada mais é do que a prudentia do ius”.

A virtude da Prudência se estabelece em circunstâncias bem peculiares. O saber científico, das ciências, esse saber “lógico” pode dispensá-la. Sobre todos os nossos conhecimentos já certos, como o saber dos seres em si e por si, imutáveis e eternos, tais quais a aurora e o crepúsculo, as estações do ano, os ciclos lunares, os matemáticos e geométricos, o saber das Formas puras (Idéia platônica), de nossa mortalidade enfim, coisas já assentadas, não se pondera, não se escolhe, não há o que discutir, alterar, portanto, não se delibera.

Só deliberamos (e aí sim, podemos orientar nossa ação pela Prudência) sobre “tudo o que é obra do homem”, como diz Aristóteles, o que está sujeito à mudança.

É por isso que não há como se atribuir à ciência meramente lógica, um valor moral, ela não é meritória, é o que é. Atentem que um mal uso da Prudência (que não é da alçada das ciências exatas) seria uma contradição pois, ser prudente – agir bem – não comporta o insensato.

Eis que a Prudência é outro gênero de conhecimento, é um saber moral porque há mérito em possuí-lo. Ela não existiria sem virtude moral. Em Aristóteles é a cisão do próprio mundo real que possibilita uma cisão paralela no interior da razão, não somente no interior da alma cognitiva (e seus modos de apreensão, exame, intelecção, cognoscência), mas da vida prática, contingente. Contingente é essa vida que levamos: instável, incerta, mutável, sujeita a atenuantes e agravantes, ao exame das circunstâncias, em suma, à deliberação.

A contingência fomenta, funda e alimenta a virtude da Prudência, faz dela sua morada pois, é justamente por vivermos num mundo contingente, ou seja, sujeitos ao trágico, ao inimaginável, ao infortúnio, é no solo do acaso e do incerto que emerge a “auriga virtutum”, a boa ação, a virtuosa, posto que bem pensada. Conforme atesta Aubenque: “é a indeterminação dos futuros que faz do homem princípio; o inacabamento do mundo é o nascimento do homem”.

A Prudência é considerada a virtude par excellence porque somente através de seu exercício é que o seres humanos podem refletir e escolher. Eis que a virtude da Prudência é a de um Saber da práxis, da ação com a qual os homens se acostumam e incorporam, se habituam e constituem sua moral.

Nossas escolhas habituais, baseadas na valoração – ou não – de nossos semelhantes, na consideração (do latim siderio, estrelas) pelo “Outro”, constituirá nossa moral, estabelecerá nosso ETHOS.

Ao revelar o ETHOS humano, a virtude da Prudência fundamenta sua incontestavelmente notória importância. Nosso planeta (habitat), como um todo, subordinado aos nossos hábitos (modus vivendi e modus operandi, passíveis de vir a ser constituídos por virtudes ou vícios) explicita nosso ETHOS.

O filósofo grego pré-socrático Heráclito é quem nos dá o mais antigo testemunho da palavra phronêsis (Prudência), ao alertar que, na multidão, cada um, ao invés de compreender o que é comum, “se deixa viver como se tivesse sua própria inteligência”. O que ele quer dizer, segundo Aubenque, é que os mortais participam, bem ou mal, de um lógos que os ultrapassa e a falta mais grave do homem é opor sua individualidade ao universal no qual se insere".

Se o melhor absoluto se revela impossível, dadas as circunstâncias, busquemos o melhor possível, nos ensina Aristóteles. Deus não delibera, não precisa; tampouco o animal detém poder para examinar suas possibilidades. Somente o homem é chamado à ação: “Torna-te o que és”, roga o magnânimo Píndaro, poeta grego.

Segundo Aubenque, “A deliberação representa a via humana, ou seja, mediana, aquela de um homem que não é completamente sábio nem inteiramente ignorante [como o daimon intermediário que vimos no artigo anterior, O Banquete sobre o Amor, de Platão], num mundo que não é, nem totalmente previsível, nem totalmente imprevisível, o qual, no entanto, convém ordenar usando as mediações claudicantes que ele nos oferece”.

Como Aristóteles, sabemos que a deliberação, o exame, cujo conceito é emprestado da prática política, não basta para constituir a virtude, pois a deliberação não diz respeito ao fim, mas aos meios; em Aristóteles, a phronêsis torna-se Prudência, descola-se do “Ideal” platônico como télos (finalidade, propósito), não diz mais respeito ao Bem, mas ao útil. Eis que a deliberação enquanto tal, pode ser posta a serviço do mal, da desmedida, a hýbris grega.

Também no frontispício do Oráculo do deus da harmonia, se lê: “Conhece-te a ti mesmo!” E conhecerás o Universo? E saberás que és um deus? Ou... E constatarás que és mortal? Sejamos Prudentes.

Convido-os, amigos, a refletir sobre o ETHOS humano à partir de nossa relação com a natureza, assistindo ao vídeo “A história das coisas”, disponível nesse Blog e também no site: www.unichem.com.br. Basta clicar em “sustentabilidade”.

Saiba mais:

Aubenque, Pierre – A Prudência em Aristóteles – Trad. Marisa Lopes. São Paulo, SP. Discurso Editorial, 2003.
Lauand, Jean – Saber Decidir: a Virtude da Prudentia. http://hottopos.com/notandum
Lauand, Jean – Filosofia, Linguagem, Arte e Educação. Coleção Humanidades – ESDC. Factash Editora, 2007.

2 de out. de 2008

O Banquete – Platão: o que é o Amor?


Num festivo Banquete, a tributar honras e glórias ao Amor, ouviremos Fedro, Pausânias, o médico Erixímaco, o comediógrafo Aristófanes, o próprio anfitrião desse symposium, o poeta Agatão e Sócrates, revelando a preciosa e aguda sapiência da sacerdotisa Diotima. Eis nosso breve recorte.

Fedro, recorrendo à autoridade de Hesíodo, dirá que o Amor é dos deuses mais antigos, que sequer possui genitores e que é, para nós, a causa dos maiores bens, pois sem ele, não há com se produzir grandes e belas obras. O Amor deve dirigir a vida de todos os homens que quiserem vivê-la nobremente; é também responsável por algo que nem a riqueza, nem as honras nem a estirpe pode incutir tão bem: “A vergonha do que é feio e apreço ao que é belo”.

Fedro se refere ao que os antigos gregos denominavam aidós (pudor, vergonha, respeito), que faz com que aquele que ama tema ser surpreendido numa atitude aviltante, sentindo-se constrangido diante do amado: “todo homem que ama, se fosse descoberto a fazer um ato vergonhoso, ou a sofrê-lo de outrem sem se defender por covardia, visto pelo pai não se envergonharia tanto, nem pelos amigos nem por ninguém mais, como se fosse visto pelo bem amado”. Para Fedro, o Amor, ao tornar-nos corajosos, é fonte de heroísmo e inspiração da moral. Afortunados são os que amam e são correspondidos. E amar, é ainda mais divino que ser amado.

Mais realista, “não é um só”, objeta Pausânias que, cingindo a unidade do Amor, subdivide-o e (não os excluindo) hierarquiza-os imediatamente: Afrodite não é só uma, há a mais velha, Urânia (Celestial) e a Pandêmia (pan = todos e demos = povos). Nesta última, amam mais o corpo que a alma. Afrodite Pandêmia (a Popular, vulgar) inexoravelmente é vencida pelo tempo (Chronos): “Com efeito, ao mesmo tempo em que cessa o viço do corpo, que era o que ele amava “alça ele o seu vôo” (citando Homero), sem respeito a muitas palavras e promessas feitas. Ao contrário, o amante do caráter, que é bom, é constante por toda a vida, porque se fundiu com o que é constante”.

Pausânias revela duas formas de Amor: Afrodite Urânia, associada ao eterno, imortal e Afrodite Pandêmia ao transitório, mortal. Os dois amores são necessários, embora sucumbir dando ênfase à Pandêmia desvirtue a pólis.

E mesmo que esteja passível de cometer um engano, um erro de pessoa, quem ama verdadeiramente é digno de nobreza.

Erixímaco aprova a distinção de Pausânias sobre a duplicidade do Amor e, universalista, o amplia a todo cosmo: “grande e admirável, e a tudo se estende ele, tanto na ordem das coisas humanas como entre as divinas”. Como é um médico, faz uma analogia com sua arte, dizendo que a medicina suscita Amor e concórdia, promove harmonia, combinando opostos (o sadio e o mórbido) que se estende por todo universo: “deve-se conservar um e outro amor (...). De fato, até a constituição das estações do ano está repleta desses dois amores, e quando se tomam de um moderado amor um pelo outro os contrários, o quente e o frio, o seco e o úmido, e adquirem uma harmonia e uma mistura razoável, chegam trazendo bonança e saúde aos homens, aos outros animais e às plantas, e nenhuma ofensa fazem; quando porém é o Amor casado com a violência que se torna mais forte nas estações do ano, muitos estragos ele faz, e ofensas. Tanto as pestes, com efeito, costumam resultar de tais causas, como também muitas e várias doenças nos animais como nas plantas; geadas, granizos e inflamações resultam, com efeito, do excesso e da intemperança mútua de tais manifestações do Amor (...)”. Eis os riscos de desequilíbrio na natureza humana (e em todo universo), pois, em Erixímaco, o Amor, um pathós (afecção da Alma) pode tornar-se doentio e daí, uma patologia (no sentido moderno).

Aristófanes insistirá no poder que o Amor possui e versará sobre sua natureza histórica. Com o seu famoso mito dos andróginos, legitimará a homoafetividade e a desenfreada busca pelo que denominamos “almas gêmeas”.

Eis que os seres humanos, inicialmente eram de três tipos: homem, mulher e andróginos. E eram também duplicados e unidos pelo umbigo (a narrativa desse belo mito está disponível na íntegra logo abaixo, nesse blog). Zeus, temendo a presunção de tanta auto-suficiência, para enfraquecê-los, divide-os em dois e cada uma das partes passará a vida à procura de sua outra metade original, que pode ser um outro homem, caso o original tenha sido a união de dois homens, uma mulher, em busca de outra ou um homem e uma mulher que se anseiam, caso dos andróginos.

Para Aristófanes, o Amor é justamente essa busca constante e incansável por sua outra metade a fim de se restabelecer o original e primitivo “todo”. Não se trata somente de união sexual, mas de “uma coisa” que a alma de um quer da alma do outro. Sobre essa “coisa” a alma não pode dizer, mas “advinha” o que quer e indica por enigmas.

Se o ferreiro divino Hefestos surgisse com seus instrumentos indagando aos amantes: “Que é que quereis, ó homens, ter um do outro? (...) Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de noite nem de dia vos separeis um do outro? Pois se é isso que desejais, fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um só e, enquanto viverdes, como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que morrerdes, lá no Hades, em vez de dois ser um só, mortos os dois numa morte comum; mas vede se é isso o vosso amor, e se vos contentais se conseguirdes isso”.

Aristófanes diz que depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só.

Reiterando que nossa natureza é una, que éramos um só, Aristófanes conclui que é ao desejo e procura do todo que se dá o nome de Amor.

Agatão, retomando a idéia dos benefícios do Amor expostos no início por Fedro, dirá que esses benefícios são decorrentes de sua própria natureza. Atribui ao Amor todas as perfeições imagináveis: ele é o mais feliz dos deuses porque é o mais belo; e mais belo porque mais jovem! Além de ser também o melhor (por ser o mais justo), temperante, corajoso e sábio.

Quanto a ser o mais jovem, diz que a prova disso é que foge da velhice. E sobre por onde anda o amor, Agatão diz que “(...) Nos costumes, nas almas de deuses e de homens ele fez sua morada, e ainda, não indistintamente em todas as almas, mas na que encontre com um costume rude ele se afasta, e na que o tenha delicado ele habita”. Em resumo, bom, belo, jovem e feliz, eis o Amor para o poeta Agatão.

Sócrates inicia seu discurso elogiando o fato de Agatão ter principiado por mostrar qual é a natureza e quais são as obras do Amor. À seguir, pergunta: “é de tal natureza o Amor que é Amor de algo ou de nada”? Agatão confirma que o Amor é Amor de algo. De qual “algo” será o Amor? Prossigamos então com mais indagações de Sócrates: “Será que o Amor, aquilo de que é amor, ele o deseja ou não”? Diante da confirmação de Agatão, dialeticamente, Sócrates se aprofunda ainda mais na questão: “E é quando tem isso mesmo que deseja e ama que ele então deseja e ama, ou quando não tem?”

Conclui-se então que o que deseja (o Amor), deseja aquilo que não possui, aquilo de que é carente.

Retomando o que fora dito por Agatão sobre quão Belo é o Amor, Sócrates o deixa sem saída: “Não está então admitindo que aquilo de que é carente e que não tem é o que ele ama?” (...) “Carece então de beleza o Amor, e não a tem?” (...) “E então? O que carece de beleza e de modo algum a possui, porventura dizes tu que é belo?”.

Agatão confessa então que nada sabe do que havia dito. Sócrates, agora associa o belo ao bom e conclui que o amor é carente de ambos. Chama a atenção para o discurso sobre o Amor que ouvira de uma mulher da cidade de Mantinéia, a sacerdotisa Diotima, entendida nesse e em muitos outros assuntos.

Passa então a relatar que, ao ser inquirido por Diotima, fora obrigado a concluir que o que não é belo, tampouco é forçoso que seja feio. Outro exemplo é de que um indivíduo, não sendo sábio, também não é necessário que seja ignorante. Diotima teria dito a Sócrates: “Não fiques, portanto, forçando o que não é belo a ser feio, nem o que não é bom a ser mau. Assim também o Amor, porque tu mesmo admites que não é bom nem belo, nem por isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está, dizia ela, entre esses dois extremos”.

Diotima passa então a provar para Sócrates que o Amor nem um deus é, pois todos os deuses, perfeitos, são felizes e belos, já possuem o que é belo e bom.

A sacerdotisa da Mantinéia dirá então que o Amor é um “gênio intermediário” (os gregos denominavam “daimon”, cuja tradição medieval simbolizou por “angelus”, anjos), algo que está entre “um deus e um mortal”.

E detém o poder, diz ela, “de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e de outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo. (...) Um deus com um homem não se mistura, mas é através desse ser [Amor, que é um daimon] que se faz todo o convívio e diálogo dos deuses com os homens, tanto quando despertos como quando dormindo”.

Ao ser indagada por Sócrates sobre a origem do Amor, Diotima relata-nos o belíssimo mito de que quando Afrodite nasceu, houve uma grande festa no Olimpo e que, entre os demais, se encontrava Recurso (Póros), possuidor de toda riqueza. Esse rico rapaz era filho da deusa Métis (a sabedoria, inteligência prática, prudência): “Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza [Penia, uma jovem mendiga], e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado, penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando (...) engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor.

O Amor, filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre, nasce sob o signo da beleza: “Eis porque ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela”. (...) “Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e energético, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista (...) está no meio da sabedoria e da ignorância. (...) Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio – pois já é –, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar (...). Não deseja, portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso”.

A estrangeira reitera que uma das coisas mais belas é a sabedoria e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o amor aspirar à sabedoria, como um filósofo. Sendo filósofo está entre a sabedoria e a ignorância.

A ação (do Amor) é o que garante aos mortais alcançar a imortalidade que lhes é possível. Diotima ressalta uma hierarquia sobre a concepção amorosa dizendo que há os que concebem na alma (belos pensamentos e virtudes) mais do que no corpo. Mas a mais importante, disse ela, e a mais bela forma de pensamento é a que trata da organização dos negócios da cidade e da família, e cujo nome é prudência e justiça.

Será o Amor, um grande deus? Indômita potência? Inspirador de virtudes? A divindade mais antiga? Eterno? Universal, pois presente em todo cosmos? A busca pela unidade? Belo e jovem? Um tipo de delírio? Filósofo por excelência? Concepção de nossa alma? Um daimon (anjo) entre o divino e o humano? Afortunada benção que garante felicidade (eudaimonia)? O que é o Amor? Entusiasmada que sou, do Belo em si platônico, vivencio-o como a assinatura do theos (divino) em todos nós.
Saiba mais:

O Banquete, ou, Do amor – Platão. Trad. José Cavalcante de Souza. Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.

Dedico esse texto ao meu Amor, por uma década de Amor e nossos frutos Sofia e Théo, que aniversaria.
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25 de ago. de 2008

Dostoiévski - Crime e Castigo


“Se a alma é mortal e Deus não existe,
tudo é permitido?”
Aliocha, personagem "do bem" de Os Irmãos Karamazov, romance de Dostoiévski publicado em 1880 (In: Irmãos Karamázov)
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Fiódor Dostoiévski (1821-1881) é considerado por muitos estudiosos um legítimo filósofo da religião. Crime e Castigo, sobre a qual versamos, está entre as maiores obras da literatura mundial. Com “Os irmãos Karamazóv” o autor garante sua posição de maior escritor russo, junto com Liev Tólstoi.

Nesse dramático romance psicológico, que também podia intitular-se “Pecado e Expiação”, Dostoiévski explicita sua censura ao niilismo (o nada, o vazio), a falta de sentido e de valores de sua época. Faz uma crítica mordaz ao maquiavelismo, à ganância da lógica sobre a consciência.

Em Crime e Castigo, é com esforço e privações econômicas que a família do jovem Raskólnikov se empenha para mantê-lo no curso de Direito, esperançosos em vê-lo triunfar, vencer na vida.

Órfão de pai, o estudante tem somente sua doce mãe, Pulkéria Raskólnikova e a virtuosa e bela irmã, Dúnia, distantes da pujante São Petersburgo.

Inteligente, o rapaz amealha alguns trocados traduzindo obras, dando aulas particulares e começa também a escrever artigos. Mora num cubículo insalubre, deve uma quantia considerável à locatária e, se não fosse pela boa-vontade da criada da pensão, Nastácia, passaria fome.

Interrompendo voluntariamente essas atividades, sua subsistência, cuja precariedade revelava-se também em seus trajes, abate-o de tal forma que se vê obrigado a trancar a matrícula da faculdade. Passa dias e dias inteiros prostrado em seu leito, numa melancolia profunda, maquinando um modo de transpor sua pobreza.

Disse Lutero que “cabeça desocupada é oficina do demônio”. Assim, sua mente vazia torna-se solo fecundo para que o diabo semeie os mórbidos pesadelos que o desespero produz.

Ele conhece a agiota Alena Ivánovna, a quem, por uma miséria, empenha um relógio de prata que fora de seu pai. A velha usurária sabia explorar, sem dó nem piedade, os necessitados que lhe batiam à porta.

Embora recluso e avesso às pessoas, Raskólnikov sente que o convívio com seus semelhantes lhe fará bem ao espírito. Decide então ir a uma taverna e lá conhece o bêbado Marméladov, com quem simpatiza de cara. Mesmo a contragosto, inteira-se sobre toda vida daquele senhor: contraiu segundo matrimônio com a viúva Ekaterina, já mãe de três crianças pequenas (9, 3 e 2 anos) e tem também uma mocinha de dezoito anos, Sônia, de seu primeiro casamento.

Sônia “era uma moça modesta e pobre, de maneiras honestas e humildes”, Instigada, na verdade, coagida pela madrasta, se prostitui para ajudar a alimentar os meio-irmãos e sustentar o vício do pai, Marméladov. “Ah! Sim, Sônia! Acharam nela uma boa vaca leiteira! E sabem explorá-la! Isso não lhes embrulha o estômago; já estão habituados... A princípio deitaram umas lágrimas; depois, com o tempo, veio o hábito. O homem é pusilânime [medroso, covarde, indeciso], conforma-se com tudo”.

A situação financeira dessa família é a pior possível: devem aluguéis da pocilga onde moram, mal têm o que vestir. Asseada, Ekaterina lava os andrajos à noite para ter o que pôr nos pequenos durante o dia que, às vezes, chegavam a três dias sem ver uma fatia de pão e choram de fome. Raskólnikov vem a conhecê-los pessoalmente e, generoso, não titubeia em dar-lhes seus últimos copeques.

O estudante recebe uma carta de sua zelosa mãe com a notícia de que Dúnia, a adorada e distinta irmã decidiu aceitar o pedido de casamento de Piotr Petróvitch Lujin que, no alto de seus 45 anos, é um advogado bem colocado na vida. Ao ler na carta que o pretendente “(...) estava resolvido a não casar senão com uma menina honesta, sem dote, e que tivesse tido privações. Na opinião dele é para desejar que o homem não deva obrigações à esposa; antes é conveniente que ela veja no marido um benfeitor” é despertado em Raskólnikov um ódio mortal por esse oportunista tão ardiloso e vil.

Raskólnikov não se enganara! Dostoiévski descreve as idéias do noivo: “Com prazer secreto ruminava no pensamento a figura de uma moça – virtuosa, pobre (devia ser pobre), jovem, bela, de boa condição social e instrução, tímida, que muito sofrera e fosse humilde em relação a ele, uma que o olhasse o resto da vida como o seu salvador (...) a beleza e a instrução de Dúnia o impressionaram (...). Estava retratada nela a moça de brio, caráter, virtude, de instrução e polidez superior à dele (ele o sentia), e esta criatura sentir-se-ia submissamente agradecida a ele, para o resto da vida (...), ele teria absoluto e irrestrito domínio sobre ela. (...). Sabia que as mulheres são grandes auxiliares. O fascínio de uma mulher encantadora, virtuosa e polida podia tornar o caminho mais fácil, graças ao poder de atrair pessoas; por outro lado, cercava o marido de uma auréola”.

Conhecedor dos nobres valores da irmã (“A sua liberdade, a sua alma, eram-lhe mais caras do que o bem-estar”), essa decisão embaraça-o mais ainda: “Ora, o motivo é bem claro; não procede em proveito próprio. Para conseguir o seu bem-estar ou para escapar à morte, é certíssimo que ela não se venderia; mas vende-se por outra pessoa, por um ente querido, adorado! Eis a explicação do mistério: é por nós, por mamãe e por mim, que ela se sacrifica. Vende-se completamente! Oh! Nesse caso violenta-se o senso moral; leva-se ao mercado a liberdade, a paz, a própria consciência, tudo, tudo! (...) Mas isso que elas vão fazer se assemelha a aceitar a sorte de Sônia, a eterna Sônia, que há de existir enquanto houver mundo! (...) Pois bem, se não pode haver amor, nem estima (...), em que difere esse casamento da prostituição? Mais desculpa tem a Sônia; essa se vendeu não para aumentar um certo bem-estar, mas porque via a fome, a verdadeira fome, portas adentro!”. E vale dizer que, se Sônia se via obrigada a negociar o corpo, jamais corrompera sua alma.

Em meio a tudo isso, há mais de um mês uma obsessão tomava por completo os pensamentos de Raskólnikov: assassinar e roubar a velha agiota, resolvendo de vez seu problema! Isso lhe martelava a cabeça o tempo todo, de modo cada vez mais insistente.

Uma teoria à qual se detia com freqüência era a de que, no mundo, havia duas categorias de homens: os ordinários e os extraordinários. Raskólnikov começa a se imaginar um desses homens extraordinários, acima do bem e do mal, acima da lei!

Doentio, como não pensava em outra coisa, elegendo um machado por arma do crime, comete um duplo homicídio: o premeditado, da velha e o da irmã dela, Lisavieta (Isabel), por quem é inesperadamente flagrado. Rouba dinheiro e jóias. Mas o tormento o persegue e não permite sequer que se atenha ao conteúdo do roubo. Esconde-o embaixo de uma pedra.

Raskólnikov está tão desnorteado que não consegue mesmo afastar-se do inteligentíssimo juiz de instrução do crime, Porfíri Petróvitch que, observador, já começara a desconfiar do comportamento do rapaz. Para esse astuto juiz, o criminoso se revela por sua conduta. A natureza não falha, aposta ele.

Começa então um imperdível jogo de gato e rato entre eles. Num dos encontros que tiveram, Porfíri Petróvitch, comentando o que Raskólnikov publicara, diz: “No artigo de que se trata, os homens são divididos em ordinários e extraordinários. Os primeiros devem viver na obediência e não têm o direito de desrespeitar a lei, porque são ordinários; os segundos têm o direito de praticar todos os crimes e de violar todas as leis, pela simples razão de que são criaturas extraordinárias. Foi isso o que o senhor disse, se não me engano”.

Raskólnikov responde: “Eis o que disse: o homem extraordinário tem o direito não oficialmente, mas por seu próprio alvedrio [vontade própria], de autorizar a sua consciência a saltar sobre certos obstáculos, no caso especial que assim exija a realização da sua idéia, a qual pode por vezes ser útil ao gênero humano. (...). Recordo-me de que em vários pontos do artigo insisto sobre a idéia de que todos os legisladores e guias da humanidade, a principiar pelos mais antigos, para continuar em Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão etc., que todos, sem exceção, foram criminosos, promulgando novas leis, violando portanto as antigas, observadas pela sociedade e transmitidas pelos antepassados; certamente eles não recuavam ante a efusão de sangue, desde o momento em que ela podia ser-lhes necessária. É notável até que quase todos esses benfeitores e guias da espécie humana foram sanguinários. Portanto, não somente todos os grandes homens, mas todos os que se elevam um pouco acima do nível comum, que são capazes de dizer alguma coisa de novo, devem por sua própria natureza ser naturalmente criminosos, mais ou menos, é claro. Em suma: o senhor vê que, até aqui, não há nada de novo em meu artigo. Isso tem sido dito e impresso muitas vezes (...). Quero estabelecer o princípio de que a natureza divide os homens em duas classes: uma inferior, a dos ordinários; espécie de matéria, tendo por única missão reproduzir-se; a outra superior, compreendo os homens que têm o dever de lançar no seu meio uma palavra nova. As subdivisões apresentam traços distintos bem característicos. À primeira pertencem, em geral, os conservadores, os homens de ordem, que vivem na obediência e têm por ela um culto. Em minha opinião, são até obrigados a obedecer, porque é essa a missão que o destino lhes impõe, e isso nada tem de humilhante para eles. O segundo grupo compõe-se apenas de homens que transgridem a lei, ou tentam transgredi-la, segundo os casos. Naturalmente os seus crimes são relativos e de uma gravidade variável. Mas, se em defesa da sua idéia, forem forçados a derramar sangue, a passar sobre cadáveres, eles podem em consciência fazer uma coisa e outra – no interesse dessa idéia, é claro. É nesse sentido que o meu artigo lhes admite o direito ao crime. (O senhor lembra-se de que o nosso ponto de partida foi uma questão jurídica.) Demais não há motivos para nos inquietarmos a esse respeito: quase sempre as massas não lhes reconhecem esse direito: cortam-lhes a cabeça ou enforcam-nos (mais ou menos) e, desse modo exercem a sua missão conservadora até o dia em que essas mesmas massas erigem estátuas a esses mesmos supliciados e os veneram (mais ou menos). O primeiro grupo é sempre senhor do presente, e o segundo é senhor do futuro. Um conserva o mundo, multiplica-lhe os habitantes; o outro move o mundo e o dirige.”

O fiel e ético amigo de Raskólnikov, Razumikin, intervém indignado: “(...) Essa autorização moral de matar é em minha opinião mais espantosa do que a autorização legal...”.

Nastácia, comentando o crime que indignou a todos, revela que Lisavieta (Isabel) havia costurado, de graça, uma roupa de Raskólnikov. Lembrar-se desse comovente episódio o angustia e o faz descobrir que não é um homem extraordinário: sua consciência o trai, ele fica terrivelmente doente, febril, delirante, fraco. Sua vida se instala num inferno. Sem um minuto de paz, cogita se entregar à polícia. Mas eles (exceto o desafiadoramente enigmático juiz Porfíri) de nada desconfiam, nem têm provas. E ele recua.

Chegando aos capítulos finais da obra, Raskólnikov está irreversível e decididamente paranóico: “Como ousei derramar sangue?” (...) “Eh! Sou um verme esteta, nada mais”.

O martírio provoca-lhe conversões. Sobre o desfecho dado pelo autor, como salienta o maior especialista em Dostoiévski, Luiz Felipe Pondé (PUC-SP): “Seu otimismo – que é característico da mística ortodoxa – aparece de forma clara no final de Crime e Castigo, naquilo a que os ortodoxos chamam metanóia, um conceito grego para explicar a idéia de transformação do indivíduo a partir das contínuas visitas que Deus faz à sua alma. (...) De acordo com Dostoiévski, por mais que o indivíduo tente ser mau – a modernidade talvez consiga, mas até então não tinha conseguido –, existe uma centelha que sempre, de alguma maneira, fica atormentando a pessoa”.

Responsável pela conversão de Raskólnikov é o exemplo de santidade de Sônia. Sua graça, doçura, sua simplicidade e fé em Deus é o antídoto à desgraça, do estar distante de Deus, que cegou Raskólnikov. É a ela que ele confessa seu crime. Aos prantos, beija-lhe os pés. É com o amor dela que ele contará para subir seu calvário e cumprir sua expiação na Sibéria.

Saiba mais:

Dostoiévski, F. – Crime e Castigo. São Paulo: Editora 34, 2001.
_____. Os irmãos Karamázov. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
_____. Memórias do subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000.
_____. O idiota. São Paulo: Editora 34, 2002.
_____. Os demônios.
Pondé, L.F. – Crítica e profecia – A Filosofia da religião em Dostoiévski. S.P.: Editora 34, 2003
Woody Allen – Filmes: "Crimes e Pecados", “Match point” e "O sonho de Cassandra".
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2 de ago. de 2008

Darwin, Nietzsche e Freud: Deus está morto?


“Aquele que tem ciência e arte, tem também religião: o que não tem nenhuma delas, que tenha religião”. Goethe

No artigo anterior (abaixo), ao versarmos sobre ontologia (ciência do ser-enquanto-ser), constatamos que podemos “pensar” o Ser, quanto a possibilidade de “dizer” sobre o Ser, a linguagem nos impõe limites.

Os pensadores acima, legítimos representantes das “luzes”, do Iluminismo, são responsáveis por algumas das idéias mais revolucionárias e polêmicas acerca da natureza social, metafísica e fisiológica do homem.

O evolucionista Charles Darwin (1809-1882), em sua famosa obra “A origem das espécies”, discorre sobre a teoria da evolução dos seres vivos mediante a seleção natural. Darwin prova por a + b que descendemos dos primatas. Convém salientar que esse eminente britânico, embora afirmasse que religião nada mais é que “estratégia tribal de sobrevivência”, acreditava que Deus era o legislador supremo.

O filólogo e filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) bebendo nas fontes gregas em “O nascimento da tragédia”, no culto ao orgiástico e desmedido Dionisíaco, em contraponto à ordem e harmonia Apolínea, identificou tensões de forças ocultas expressas na tragédia grega, especialmente nas dos pioneiros, Sófocles e Ésquilo. Considera Homero, insuperável. Também estudou o antiqüíssimo Zoroastrismo, religião que professa que seu “deus” Ahura-mazda abarca o bem e o mal em si mesmo.

Para Nietzsche, o que há é a natureza, em sua potência energética: Apolo (ordem) em contraponto a Dioniso (caos). Uma espécie de cega, pujante e indestrutível “vontade de potência”, sempre em luta, em alternância. Um não existe sem o outro; na verdade, cada uma dessas potências (luz e escuridão), só se revela, através da outra. Nietzsche dirá que, a natureza tem seus desígnios, e a piedade não é um deles. A religião, especialmente “a do crucificado”, é a responsável por insistir na cultura dos fracos, operando uma transvaloração (inversão) dos valores tais como os dos escravos que valoram a coragem como sendo um mal. Eis que o cristão afirma: nós, os escravos, somos vítimas, somos bonzinhos; eles, os senhores, os afirmativos, são malvados, opressores, não prestam. A submissão foi transformada numa virtude chamada obediência. Disso resultará o grupo dos ressentidos. E todo ressentido torna-se venenoso.

Já o médico austríaco Sigmund Freud (1856-1939), considerado o “Pai” da psicanálise, disciplina que intenta mapear “geneticamente” a psique humana, revelou-nos o inconsciente e suas motivações; Também recorreu aos mitos e tragediógrafos gregos e, eis outro misterioso enlace matrimonial: as pulsões de Eros e Tânatos (pulsões de libido e de morte), ação e repouso, vida e destruição, sempre em conjunto. Freud afirma que o sentimento religioso de um vínculo indissolúvel, de algo ilimitado, sem fronteiras, essa sensação de eternidade, algo oceânico, por assim dizer, não passa de uma ilusão.

Para ele, todo nosso histórico biológico, encontra-se preservado em nossa vida mental, psíquica. Tal sentimento pode ser identificado acompanhando o feto no interior do útero, onde se encontra no verdadeiro paraíso, com todas as necessidades satisfeitas, em prazer imperturbável e absoluto. Dessa “memória” biológica (registrada em nosso inconsciente) deriva nossa sensação de plenitude, para onde sempre desejaremos regressar: “cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável [os infortúnios, acasos do destino, a finitude, por exemplo] pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade. Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade é efetuada em comum por um considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo”. E acrescenta: “É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal” (O Mal-Estar na Civilização).

Darwin, Marx, Nietzsche e Freud são os responsáveis pelo que a academia aponta como sendo “a morte de Deus”. Obviamente, alguns empresários de Deus e instituições religiosas sentiram-se atingidas por suas surpreendentes e perturbadoras descobertas.

Lenda de Adão e Eva, teoria do Big Bang ou quaisquer outras explicações, nada disso abala o homem de fé. Para transcendermos, “acessarmos” o inefável e sublime do Ser, cuja essência sempre escapa ao conceito e à razão, nada como a contemplação da vida, a natureza, a arte e, dentre as expressões artísticas (pinturas, esculturas, arquitetura, literatura, etc), a música é insuperável: arrebata e enleva instantaneamente. O genial Ludwig van Beethoven (1770-1827) imortalizou-se com apenas quatro notas musicais! Ciência, arte e amor, suprema religião: onde os deuses e os homens se encontram.

Saiba mais:

Ouçam o imortal Beethoven, sob a batuta do inesquecível Maestro Herbert Von Karajan.
Karajan – Beethoven Symphony No. 5 Part 1

http://www.youtube.com/watch?v=zhcR1ZS2hVo

2 de jul. de 2008

Ser ou não ser? Eis a questão! Ser e não ser? Eis a confusão!



Nos primórdios da pólis grega, numa época em que o poder do discurso fomentava a vida no Ágora (praça pública), maravilhando a todos os ouvintes, logógrafos eram “profissionais” como os que intitulamos hoje advogados: arístois (os bem nascidos, os melhores), cultos, bem instruídos e versados na arte da persuasão. Convém ressaltar que, nem todo sofista era logógrafo; mas todo logógrafo era sofista.

À chegada de um cidadão, reclamando a posse de um carneiro, por exemplo, o logógrafo indagava: Bem, e se o indivíduo a quem acusas já tiver vendido ou simplesmente comido teu animal? Ao que o queixante, resoluto, antecipava: Que me pague então dez dracmas!

Não era incomum que esse mesmo logógrafo fosse acionado pelo réu para que redigisse a argumentação de sua defesa. Curioso é que ele, acendendo uma vela pra deus outra pro diabo, se dedicava e muito na redação dos dois discursos, empenhadíssimo em descobrir a verdade, para que se fizesse a justiça.

Teria a arte da dialética (dialektiké téchne) poder para alcançar e revelar a tão almejada verdade?

Quem primeiro legou escritos sobre a ontologia (ciência do ser-enquanto-ser) que, juntamente com a teologia constitui um dos ramos da metafísica, foi o filósofo grego pré-socrático Parmênides, da cidade de Eléia (515-450a.C.). Não por acaso, Platão reconheceu nele, mais que um Mestre, um “pai espiritual”.

Conhecer a filosofia de Parmênides é absolutamente necessário para que possamos compreender o processo que conduz ao conhecimento. Para ele, a verdade não é alcançável sem esforço e, também não o é por todos.

Ao se deslumbrar diante da physis (natureza) e afirmar que Ser é e que não pode não-ser, o eleata estabeleceu a “Lei” ou “Princípio lógico da não-contradição”. Esse grande princípio, formulado com um rigor lógico formalmente incontestável por Parmênides, receberá de Aristóteles a sua mais célebre formulação e defesa. Constituirá no fundamento de toda lógica, desde os tempos mais remotos até os dias atuais: É. Se admitíssemos também o “não-ser”, o “não-ser” seria; e daí já não poderia “não-ser”. Parmênides foi claro ao enfatizar a proibição do não-ser. Fiquemos, portanto, com o Ser (absoluto) de Parmênides: É.

Mas, o que é o Ser que é? Melhor inquirindo: é o que? Se nos for vetado a possibilidade de falar, de dizer sobre o Ser, o que nos resta? Pensar o Ser. Somente “pensar”? Nada dizer?

Emudeceríamos ou incorreríamos numa tautologia do tipo: o que é o Ser? O Ser é. E o que é? É o Ser. Ou, como afirma o velho testamento (2º livro do Pentateuco, Êxodus, 3,14): “Deus disse a Moisés: Eu sou aquele que sou”.

Noutro exemplo: o que é Deus? Deus é eterno. O que é eterno? Eterno é Deus. E assim (eis outra misteriosa soleira da metafísica), como alertava Parmênides: “(...) é preciso que de tudo te instruas, do âmago inabalável da verdade bem redonda (...)”, num círculo eterno.

Ora, se não disséssemos nada sobre o Ser, se nos tivéssemos calado, o Ser teria engolido o discurso (lógos), que era justamente a instância racional que poderia dizer algo dele. Talvez o Ser, como a verdade, seja abstrato, grandioso demais para ser abarcado e formulado, sentenciável, ajuizável conforme os limitados instrumentos lógicos que dispomos. Kant afirma que “A razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos”. E Heidegger proclama a metáfora “do som ressonante do silêncio” como sendo a melhor aproximação que se tem da iluminação atingida pela contemplação não-discursiva.

Para a pólis, para a cidade que gira em torno do jurídico e do político, no entanto, o “vazio”, o “indizível”, esse “som ressonante do silêncio” ontológico, não interessa.

Faz-se necessário, para que se possa “dizer do Ser” (através das coisas que são), fundar, estabelecer, instituir a possibilidade de um discurso; colocar em diálogo, em lógos duplo (mas não estamos aqui nos referindo a duas pessoas, pois em nós mesmos o lógos se subdivide, afirmando ou negando algo de algo) através da linguagem.
O que vai permitir que algo seja isso ou aquilo (mesmo contrário, como ser e não-ser) é o lógos. É da dýnamis (potência) do lógos desenvolver a arte da dialética: razão, discurso, argumentação, reflexão, recolhimento, contagem. O lógos prova, persuade, coloca em palavras nosso pensamento.

Graças à linguagem, estamos aptos a dizer do Ser (na verdade, das coisas que são), podemos discursar: Ser é isso, não é aquilo (repare que ela, a linguagem permite que o não-ser seja).

É do lógos: classificar, sistematizar, organizar, ordenar de todas as maneiras pelas quais um atributo (predicado) pode ligar-se a um sujeito. Dos seres que são, “ancorados” no Ser [que simples e absolutamente é] do qual não havia como dizer mais nada, falamos e dizemos outras coisas deles mesmos.

Ampliando a plasticidade do lógos, descolamo-nos da ontologia. Como um logógrafo, emitimos juízos, opiniões (doxa), criamos sentenças e nossos dizeres são passíveis de verdade ou falsidade.

As palavras detêm de uma força própria que tem conseqüência ético-política. O “Ser” de Parmênides, como o Deus de Moisés, simples e absolutamente É. Mas, livres somos. E no lógos humano, tudo é possível, inclusive “ser e não-ser”.
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26 de abr. de 2008

Hannah Arendt – No murmúrio da multidão, a consciência adormece


“Deus criou o homem para introduzir no mundo a capacidade de iniciar. Ser humano e ser livre são, então, uma única e mesma coisa. E homens e mulheres são livres apenas quando agem, nem antes, nem depois; pois 'ser livre e agir são o mesmo'. Hannah Arendt – Entre o passado e o futuro


Alemã, Hannah Arendt (1906-1975), nasceu numa abastada e antiga família judia. Sempre resistiu ao título de Filósofa, pois considerava-se, “apenas” uma pensadora. Afirmava que o pensamento deve estar a serviço da vida e não numa encapsulada Filosofia. Teve o privilégio de ser aluna e amiga pessoal de Heidegger, Husserl e de Jaspers, expoentes da corrente filosófica fenomenológico-existencial.


Diferente da ontologia metafísica antiga, cuja origem remonta a Platão, a fenomenologia existencial parte das coisas que aparecem no mundo. Tomemos o seguinte exemplo: a experiência sensível (de onde também parte a razão científica) nos permite constatar se alguém está ou não morto. Já o conceito da morte em si, cabe à metafísica. Arendt se debruça sobre os fenômenos em seus modos de aparição na existência mundana pois, para a fenomenologia “ser” e “aparecer” coincidem.


Em 1933, Hitler toma o poder e Hannah Arendt, judia, vê ruir a possibilidade de lecionar nas universidades alemãs. Perseguida pelo nazismo, passa a viver como apátrida, em exílio. Essas circunstâncias são extremamentes relevantes para a compreensão das obras desenvolvidas em sua vida: meditações filosóficas, análises de teorias políticas e tentativa de explicar os inusitados e nefastos rumos de seu tempo.


Em 1951, com “Origens do Totalitarismo” (termo cunhado por ela que significa governo, país ou regime que centraliza todos os poderes políticos e administrativos, proibindo a atuação de quaisquer outros partidos ou grupos políticos) detém-se a analisar de modo sistemático esse fenômeno inédito, que não se enquadrava nas categorias tradicionais das ciências políticas.


Arendt testemunha o antigo e complexo enlace entre moral e política (vide artigo “A Lei Divina (Thémis) e a Lei dos Homens (Diké) em Antígona, disponível no site: www.esdc.com.br) vexatória e desumanamente rompido nos tempos em que viveu; revela a necessidade de recuperar a dignidade da política como atividade (práxis) fundamental da vida em comum.


Com base numa antropologia filosófica, responderá sobre em que condições um universo totalitário é possível. Filósofa do real (existencialista), Arendt tomará por objeto de estudo a vida ativa (que atua, age no mundo e não a contemplativa, tradicional na Filosofia) vendo-a por três modalidades de atividades fundamentais do homem na cultura: trabalho, obra e ação.


Sobre o trabalho, atesta ser uma atividade indefinidamente repetitiva e voltada exclusivamente para satisfação e preservação das necessidades vitais humanas. O trabalho em si é, portanto, produção de tudo o que é perecível.


Quanto ao que denominou “obra”, cabe a produção de bens duráveis, artefatos e objetos que não são aniquilados assim que consumidos. Mas mesmo essa “durabilidade” é relativa e está sujeita/submetida à utilidade e ao ciclo dos meios e dos fins.


Somente a ação é, em suas palavras, “a única capaz de transcender o ciclo da necessidade vital e da cadeia infinita dos meios e dos fins. Inseparável da palavra, a ação é revelação do homem, num espaço público de surgimento [pólis] em que cada um é visto e ouvido por todos”.


Em sua obra “A condição humana” (1958), observa que “estar isolado é estar privado da capacidade de agir”. Mesmo não sendo privilégio exclusivo do ator político, a ação humana enseja a constituição de um espaço público (distinto do âmbito privado) por onde se estende toda a vasta rede de relações/atuações humanas. A ação se dá no espaço público. Por outro lado, a ação que se dá no espaço público não pode perder a conotação individual. Em verdade, não agimos quando somos levados pelo coletivo que se manifesta através de nós. Nesse sentido, o sociólogo Zygmunt Bauman, em sua obra “Ética pós-moderna” alerta que, “Na multidão, somos todos iguais. Andamos juntos, dançamos juntos, nos acotovelamos juntos, ardemos juntos, matamos juntos”.


Não há porque agirmos como marionetes guiadas por determinismos históricos ou de qualquer outra ordem. A liberdade está em nosso poder de criar o novo: “O começo é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem” (Origens do Totalitarismo).


Transformar as diferenças em monotonia (unidade) é a tentação permanente das sociedades totalitárias. O nazismo e o comunismo foram as expressões máximas desse desejo de unidade.


Leia este artigo na íntegra à partir de 5 de maio no site da ESDC: http://www.esdc.com.br/

26 de mar. de 2008

ETHOS: entre a Verdade e a invenção das razões


O Homem “mede” o outro e indaga a si mesmo: que poder (do grego, krátos) você tem?


A diferença entre as ciências exatas (desumanas?) e as ciências humanas (imprecisas e inexatas?) é fundamentalmente de linguagem. E isso não é pouca coisa. Os cientistas das áreas de exatas não se reúnem num congresso a fim de obter consenso sobre o conceito da palavra “estrutura”, por exemplo. Em “humanas”, somente para essa palavra já foram estabelecidos nada menos que trinta e sete conceitos distintos. Cabe lembrar que todo conceito nasce pela igualação do não-igual.


Se a matemática e a geometria (musa inspiradora de Platão), por exemplo, são ciências “puras”, “a priori”, pois dispensam a experiência e estão muito bem acomodadas no abstrato mundo das idéias (Ideal) pois, independente da época, geografia ou cultura, duas vaquinhas com mais duas vaquinhas soma o total de quatro vaquinhas (e não se discute mais isso), o mesmo não se pode dizer do rico e fértil solo das ciências humanas.


Enquanto o Sol, na física, define-se friamente como sendo uma massa de Hidrogênio em fissão nuclear que se transforma em Hélio, na área de humanas, o Sol é um fogo sempre vivo (fragmento 94 de Heráclito). O astro-Rei não dará conta da colossal magnitude com a qual inflama de forma desmedida o apoteótico ego humano, iluminando sua sensibilidade ou obscurecendo-o na estupidez da ignorância.


Um exemplo claro de como a linguagem quase nos deixa numa aporia (a/póros = sem saída) é fornecido por Platão na República: tomemos nossos cinco dedos. São diferentes ou são semelhantes? Podem ser (e são) as duas coisas! É nesse momento que caminhamos para o nous (poder de intelecção que está na alma). Os dedos participam da idéia de diferença e de semelhança dos dedos. Retomando, sujeito ao referencial, o Sol é e não é do tamanho de um pé (frag. 3 de Heráclito).


Segundo o Filósofo Henrique C. De Lima Vaz, todas as coisas são physis (numa tradução ainda insatisfatória: natureza). Nosso modo de ser (modus vivendi, modus operandi) é transformá-la e a isso chamamos ethos (do grego “habitat”, hábito, costume, caráter). Sendo nossa conduta construto cultural, é no ethos que se alinhava toda história da humanidade, em constante mudança (novamente Heráclito), sempre em processo de vir-a-ser.


Leia esse artigo na íntegra à partir de 10 de abril no site da ESDC: http://www.esdc.com.br/

21 de fev. de 2008

Etiqueta: entre a virtude e a hipocrisia



"Minha cara, intimidades geram duas coisas: filhos e mal-entendidos. E não pretendo ter nenhum dos dois com a senhora".

Jânio Quadros (a uma jornalista que o tratou por "você")


Existir é existir com. Para que possamos desfrutar de uma, senão de todo harmoniosa, ao menos perfeitamente suportável, convivência com nossos semelhantes, algumas regras de conduta social são fundamentais. Assim, evita-se a barbárie e o inferno que podem surgir da proximidade. E quanto mais próximos, maior a possibilidade de conflitos pois como dizem, é fácil amar a humanidade, difícil é amar o próximo.


Dentre os modos pelos quais se regulam as relações humanas em sociedade, contamos com o Direito e seus contratos. Zoopolitikon, será nas relações cotidianas que as regras de etiqueta, a cortesia e a polidez terão a função social do respeito pelo outro, por sua diferença, promovendo a concórdia (cordis, coração) entre os indivíduos chamados a viver juntos.


Certos de que as boas maneiras antecedem as boas ações e conduzem a elas, pelo exemplo, pela tradição oral, preocupamo-nos em ensinar aos pequenos algumas regrinhas básicas de boa educação: “por favor”, “obrigada”, “desculpe” etc., além de orientá-los quanto à linguagem, comedimento nos gestos, respeitar os mais velhos, não roubar e não mentir, por exemplo. É assim que, desde cedo, aprendemos a respeitar e a nos fazer respeitar.


A palavra etiqueta, é oriunda de duas fontes, grega e francesa e terão ainda dois significados distintos. O éthos grego refere-se a conduta, comportamento. Também do grego, a palavra stikos significa lugar. Já a “pequena ética”, que reduz a ética (éthos) a uma apresentação aprazível, portanto, estética do bom e do belo, a étiquette francesa é, segundo Renato Janine Ribeiro “originalmente um escrito num saco de processo, que servia nos tribunais para se identificar os documentos, portanto, os nomes das duas partes e do procurador [...]. Em 1580, etiqueta é qualquer pedaço de papel afixado a um objeto para informar sua natureza, conteúdo, características, preço etc. Mas ao migrar da corte jurídica às formas político-sociais, a etiqueta retorna à sua etimologia de rótulo e, com todo seu ritual, mesclando fascínio e intimidação, passa a explicitar a indicação do lugar do indivíduo na hierarquia social”.


A etiqueta almeja civilizar os costumes e esses se alteram ao longo da história. Houve época em que não existiam sequer talheres; independente da classe econômico-social comia-se com as mãos. No século XIII Tannhäuser orienta que “não se deve palitar os dentes com a faca, afrouxar o cinto sentando-se à mesa, assoar-se com a mão durante as refeições, devolver à travessa os restos do que comeu”. Em 1558 o arcebispo Giovanni della Casa, além de propor que o homem reduza o número de cusparadas, orienta: “Tu não deves, depois de te assoares, abrir o lenço e olhar o que este contém, como se pérolas ou rubis te houvessem descido do cérebro pelo nariz”. Em 1672 não é mais admissível que se boceje diante dos outros nem que se cuspa no chão.


As regras de etiqueta, convenções sociais reconhecidamente aceitáveis, além de exprimir um rito prazeroso de reiteração da ordem social permitirão ainda exercer a cortesia que tanto dignifica e honra quem a pratica. E a cortesia está intimamente ligada à honra pois: “Se a etiqueta prevê, com exatidão, até mesmo quem deve tomar a iniciativa de estender a mão ou cumprimentar, ela também abre iniciativa à cortesia: a honra não está apenas em ser o primeiro, está muitas vezes em saber ceder este lugar. É honroso honrar, ou (em outras palavras) só quem tem honra pode oferecê-la.”


Vaidosos, desde os primórdios de nossa sociedade guerreira, a questão da honra refere-se à avaliação pública sobre o respeito que os indivíduos julgam merecer. A honra está portanto, intimamente ligada ao orgulho, ao amor-próprio, ao anseio de imortalidade e a distinção que se deseja obter entre os semelhantes. Nada mais nobre.


Leia esse artigo na íntegra no site da ESDC: http://www.esdc.com.br/


23 de jan. de 2008

Sartre: "O inferno são os Outros"


No artigo anterior, versando sobre "A Morte de Ivan Ilitch", constatamos que, dentre os riscos de se deixar pautar por valores alheios está o de viver uma vida destituída de sentido pessoal. Ponderemos agora como o ser humano, enredado pela má fé, acaba por delegar a terceiros a angustiante responsabilidade de decidir sobre sua vida. Como "piolhos", viver pela cabeça dos outros pode tornar nossa existência um inferno. Mas afinal, quem são os "outros"?

O Filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), além das famosas obras filosóficas ("A Náusea", "O Ser e o Nada"), escreveu romances, contos, peças teatrais e atuou também como crítico literário e de artes. (...)

Esse artigo estará disponível no site da Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC ( http://www.esdc.com.br/ ) no início de fevereiro de 2008.

12 de jan. de 2008

A morte de Ivan Ilitch - Tolstói


“O que justifica o ato de viver é a solidariedade, ativa e iluminada que aniquila o eu egoísta e fornece a paz interior” Luiz Venere Décourt (1911-2007)

Nessa magistral obra-prima (considerada por Vladimir Nabokov “a mais artística, mais perfeita e de mais sofisticada realização da história mundial”) legada pelo conde russo Leon Tolstói (1828-1910), defrontamo-nos com o soberano do destino: o fim. Eis nosso denominador comum.

Fim! Decreta a morte. Pode-se até contestar que seja ou não o “fim último”, mas abster-se desse encontro marcado ninguém conseguiu. A morte é uma prova final, aplicada a qualquer momento; e por mais que se creia não estar preparado, todos somos aprovados.

Impossível não se comover com esse personagem: “A vida de Ivan Ilitch era das mais simples, das mais vulgares e, contudo, das mais terríveis. Juiz do Tribunal, falecia aos 45 anos”.
Escarafunchando a angustiada consciência do irrepreensível juiz Ivan Ilitch, em breves 85 páginas, Tolstói nos brinda com o relato de um “acerto de contas”, revelando a futilidade do modelo de vida burguês. Será, preso ao leito, frente a morte certa, que a vida de Ivan Ilitch se revelará mais livre, mais autêntica e pujante. As preocupações corriqueiras, os afazeres mundanos impediram-no de pensar nela.

É com espanto que, diante da morte iminente, atina que viveu uma vida de aparências, tanto no desempenho de seu trabalho, quanto no casamento e em suas demais relações sociais. Ivan Ilitch conclui que sua existência fora desprovida de um propósito mais significativo, que não passou daquilo que a sociedade, com seu mero jogo de interesses, de galgar posições de prestígio, de “parecer estar bem”, preconizava. Em resumo: uma autêntica vida de falsidades. Para seu desespero, até mesmo àqueles a quem julgava ser fundamental e amado, sua mulher e filhos, vivenciam sua convalescênça como sendo um capricho inexplicável (a mulher) ou um aperreio, um estorvo (sua filha).

O sucesso profissional, o empenho pela manutenção da ordem, do status quo, daquilo que, aos olhos dos outros era tido como o “certo”, sempre fora o norte de sua “aparentemente” bem sucedida (na verdade, ordinária) vida: “Não era um adulador, nem quando menino, nem quando homem feito, porém, desde a infância, sentira-se naturalmente atraído pelas pessoas que ocupavam posição elevada na sociedade, tal como mariposas pela luz, e assimilava-lhes as maneiras e as opiniões, forçando ainda relações amistosas com elas”.

Leia esse artigo na íntegra no site da Escola Superior de Direito Constitucional - ESDC

Parmênides, Heráclito e a Caixa de Pandora


Alexandre Cabanel - Pandora

O eterno, a mudança e a esperança no porvir

Amigos leitores, estamos chegando ao final de mais um ciclo. Novamente, outro se iniciará, num eterno devir (vir a ser, porvir, tornar-se). 

A eternidade é uma espécie de presente contínuo; é o que experimentamos agora, em nossa vida, sempre em mudança. Filosofemos com os exponenciais filósofos pré-socráticos Heráclito, Parmênides e Hesíodo.

Parmênides, nasceu na cidade de Eléia, na Magna Grécia, em cerca de 540 a.C. Ele legou uma das maiores posições metafísicas radicais da história do pensamento filosófico ocidental. 

Trata-se da primeira grandiosa formulação do princípio de não-contradição; aquele princípio que afirma a impossibilidade de os contraditórios coexistirem simultaneamente. Esses dois supremos contraditórios são o “ser” e o “não-ser”. 

Para o Eleata, “O Ser é, e é impossível que não seja” e também afirma: “O Não-Ser não é e dele não se pode sequer falar”. Junto a essas duas proposições, há ainda uma terceira: “É o mesmo o Ser e o Pensar”. O ramo da filosofia que se debruça ao estudo do “Ser enquanto Ser”, chamamos ontologia.

O Ser, é ingênito e incorruptível. Impossível ter sido gerado pois se fosse, teria sido derivado do não-ser ou do ser: do não-ser é impossível, porque o não-ser não é; do ser é também impossível, porque então já seria e não haveria necessidade de ter sido gerado. 

E é também por essas mesmas razões que é impossível que se corrompa. O “Ser” não tem um passado (porque nesse caso não seria mais) e tampouco um futuro (porque não seria ainda). O “Ser” é o que há de imutável no mundo, o (tempo) presente eterno sem início nem fim. É o “agora”, é o que vivemos.

Heráclito, da cidade de Éfeso, contemporâneo de Parmênides (aquele da afirmação de que não se banha duas vezes no mesmo rio), legou o célebre aforisma de que “Tudo Flui” (Panta Rhei). Tudo muda, o tempo todo; que tudo se altera é uma certeza que temos. 

O Filósofo francês Marcel Conche afirma: “Que tudo muda, é algo que não muda. Que tudo passa, é algo que sempre será verdadeiro”. O que não muda é o devir. O que não se altera é o “Ser” (o tempo presente, o eterno “agora” do Ser de Parmênides).

Tudo passa. Mas é só no presente que nos damos conta dessa passagem. O passado já era, não é, não existe mais (embora no presente possamos rememorá-lo). 

O futuro é o porvir, ainda nem existe, não passa de uma promessa de vir a ser, tornar-se. Também, somente no presente possamos ponderar sobre o futuro; é necessário então, dispor do nosso tempo presente para imaginá-lo.

A eternidade é e, paradoxal e simultaneamente, está em mudança contínua. É agora e também será em instantes; será um outro “agora” (não mais enfadonha!), mas o será sempre.

Logo, o que caminha de mãos dadas com a eternidade parmenidiana é a certeza de mudança heraclitiana.

Ainda anterior aos Filósofos acima, o aedo (poeta) Hesíodo, em sua obra “Os Trabalhos e os Dias”, narra o mito de Prometeu e Pandora. 

O soberano do Olimpo, Zeus (Júpiter), encolerizado, encomendou ao mestre da technée, Hefestos (Vulcano), uma mulher belíssima, fascinante, perfeita, com todos os dons (pan = todos e dora = dons), juntamente com um grande e misterioso vaso (pithos = jarro) ou caixa, na versão mais corriqueira. 

Era para que os homens fossem castigados em razão de Prometeu ter roubado e lhes entregue o fogo divino. O ordenador do cosmos era contrário a esta dádiva, sabia que os homens se julgariam melhores que os deuses e esqueceriam seus deveres para com os semelhantes. 

Prometeu, conhecedor do que que estaria por vir (pro = antes e metheus = vidente), esquivou-se de tal presente, alertando também seu irmão, Epimeteu (que só sabe do resultado de uma ação depois de tê-la infringido). 

Mas Epimeteu não resistiu aos encantos da fêmea e acolheu Pandora. Dentre todos os dons com os quais fora guarnecida, ela contava também com a persuasão, a graça e a ardilosidade, a imprudência e a curiosidade: fez-se o malefício, brincadeira de Hermes (Mercúrio). 


Após muito resistir, Pandora sucumbe, abre a caixa e... tarde demais! Espantosa fonte de calamidades, dela escapam todos os males que assolam a humanidade (peste, guerra, violência, fome e miséria; também geres, a velhice maldita para o corpo e inveja, despeito e vingança para o espírito).

Desesperada, Pandora fecha imediatamente a caixa. Lá, só restou... o porvir.

O porvir, o futuro, o que está para acontecer, benéfico ou não, foi o que restou na magnética caixa, astutamente enviada por Zeus. E não poderia ser de outra forma. Ao sair da caixa, o porvir torna-se presente, passa a ser.

Santo Agostinho, ao esclarecer sobre a eternidade, dizia que ela era um presente que permanece presente, e que o real é, portanto, a própria eternidade: o perpétuo hoje de Deus (ou, para os não-religiosos, o perpétuo hoje do mundo).

Na expectativa, nós é que acalentamos a ESPERANÇA (Élpis) de que, na cidade dos homens e/ou na cidade de Deus, o porvir seja afortunado. 

Feliz e abençoada nova (eterna) caixa de Pandora para todos nós!

► Saiba mais:
Hesíodo – O Trabalho e os Dias. Trad. Mary de Camargo Neves. Ed. Iluminuras (1996)
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Discurso da Servidão Voluntária


“A tirania não é ato de força ou violência de um homem ou de um bando de homens, mas nasce do desejo de servir e é o povo que gera seu próprio infortúnio, cúmplice dos tiranos” (Marilena Chauí)

Com “Le Discours de la Servitude Volontaire” (1552), compreendemos que a gênese da desumana opressão exercida pelos poderosos aos menos favorecidos é atemporal e universal. Escrita como um mero panfleto militante, aos 16 ou 18 anos pelo Pensador francês Etienne de La Boétie, enquanto estudante de Direito, esmiúça os porquês que levam a multidão a se permitir escravizar, cega e voluntariamente, a se dispor a servir.

Para La Boétie é o povo que se sujeita e se degola; que, podendo escolher entre ser súdito ou ser livre, rejeita a liberdade e aceita o jugo, consente tal mal e até o persegue. Como ocorre esse processo é sobre o que o autor se debruça. Etienne esclarece que o tirano obtém seu poder com a conivência do próprio povo subjugado e que a este bastaria decidir não mais servir, recusar-se a sustentá-lo para que se tornasse livre. São apontadas na obra, as três razões que culminam numa servidão voluntária.

Ao esmiuçar os meandros da servidão, revela como está em nós enraizada a vontade de servir, apesar de existir em nossa alma um germe de razão produtor da virtude (desde que alimentados pelos bons costumes e bons exemplos) e de que a própria natureza é justa (pois para esta, nenhum ser humano pode ser mantido em servidão). Os próprios animais prezam a liberdade e se recusam a servir; quando o fazem é por imposição.

Afirma também haver três tipos de tiranos, maus Príncipes: 1) os que o obtém o poder pela força das armas; 2) àqueles que o herdam por sucessão da raça e 3) os que chegam ao poder por eleição do povo. Os que o obtém pelo direito da guerra, agem como em terra conquistada; quanto aos reis, nascidos e criados no seio da tirania, consideram os povos a eles submetidos como servos hereditários, têm todo o Reino e seus súditos como extensão de sua herança.

Quanto ao eleito pelo povo, não nos enganemos: ao se ver alçado a um posto tão elevado, tão alto – “lisonjeado por um não sei quê que chamam de grandeza” – toma a firme resolução de não abrir mão da res pública. “Quase sempre considera o poderio que lhe foi confiado pelo povo como se devesse ser transmitido a seus filhos”. Para La Boétie, é essa idéia funesta que o faz superar todos os outros tiranos em vícios de todo tipo e até em crueldades.

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Charles Baudelaire e os Paraísos Artificiais


Os etéreos “néctar e a ambrosia” eram bebida e alimento dos deuses.
Ao mortal que ousasse os ingerir era destinada a glória dos olímpicos
ou, em desmedida, a bestialidade humana.

O uso freqüente de substâncias que alteram a percepção consiste num perigoso exercício que aniquila a liberdade, tão cara a dignidade humana. Traremos as impressões de um espírito refinado e singular, que fez uso dessas emanações vegetais nos legando, numa lúcida experiência, a análise dos efeitos misteriosos e dos inevitáveis riscos que resultam de seu uso prolongado. O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), famoso por sua magnífica Obra “As flores do Mal”, reunindo-se com os amigos no luxuoso Hotel Pimodan, desfrutou do haxixe (cânhamo indiano, cannabis), do ópio e do vinho.

As propriedades excitantes do cânhamo eram bem conhecidas do Antigo Egito e seu uso era muito difundido, sob diferentes nomes, na Índia, na Argélia e na Arábia Felix.

Em “Paraísos Artificiais”, o poeta relatará sua aventura sem, no entanto, deixar de falar sobre os “esforços sobre-humanos de vontade que lhe foi necessário empregar para escapar à danação a qual ele, imprudentemente, se havia devotado”.

Baudelaire considera que é mais importante conhecer a ação do veneno sobre a parte espiritual do homem: “Se naturezas grosseiras e embrutecidas pelo trabalho diário e sem encanto (refere-se a “embriaguez mais repugnante dos suburbanos que, com o cérebro carregado de fogo e glória, rolam ridiculamente nos lixos da rua”) encontram no ópio grande consolo qual não será então o seu efeito num espírito sutil e letrado, numa imaginação ardente e cultivada?”

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O que confere dignidade ao homem?


“O propósito ideológico do jovem que melhor traduziu o espírito do humanismo, intentava unificar os dois maiores sistemas de pensamento da humanidade: o idealismo platônico e o realismo aristotélico”

Turbilhões de idéias e ideais foram fomentados, entre o crepúsculo da Idade Média e a aurora do Iluminismo. Fervilhante e incerto, como o nosso atual, era o universo que cerceava o jovem Filósofo que nos legou um dos textos angulares sobre o significado de dignidade, característica intrinsecamente humana. Estamos no Renascimento, época das grandes navegações e de muitas outras descobertas relevantes e irreversíveis para toda humanidade.

O autor que descortinaremos, Giovanni Pico Della Miràndola, situa-se então, entre o alinhamento transcendente e metafísico-religioso da cultura medieva e o homem novo, surpreendido pela ótica da autonomia da razão, consciente de sua liberdade e do potencial construtivo com o qual ela acena. Os estudiosos de seu pensamento consideram “A Dignidade do Homem” (Oratio de Hominis Dignitate) não somente seu texto mais original como ainda tradução fiel do que foi o movimento humanista do Renascimento.

Ao se debruçar sobre a questão da dignidade humana, Pico Della Miràndola revelou-se, nas sensíveis e certeiras palavras de Luiz Feracine “uma alma pura que se enamorou dos mais sublimes ideais de perfeição humana”.

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Platão e Aristóteles


O Discípulo não supera o Mestre, o complementa

Impossível discorrer sobre a singularidade do pensamento de Aristóteles (384 – 324a.C.) sem contextualizá-lo diante de seu Mestre, Platão (Arístocles: 428-347a.C.), que por sua vez fora discípulo de Sócrates e, o primeiro a elaborar uma teoria sobre a Alma. Para esclarecer o que distingue esses dois Pensadores, ponderemos sobre as dicotomias, as duplas de opostos/complementares que constatamos através dos sentidos (dia e noite; macho e fêmea) ou do Espírito (O Bem e o Mal). Dicotômica também será a linha teórica filosófica adotada por esses Filósofos de truz.


Em 387a.C., Platão fundou o que pode ser considerada a primeira instituição de ensino superior do mundo ocidental, a Academia de Atenas (dedicada à deusa da Sabedoria e da Justiça). No 1º nível (até os 16 anos), treinamento científico: matemática, ginástica, astronomia, música e geometria: na entrada uma placa avisava: “Ageometretos mé eisito” (sem geometria, não entre). Já no 2º nível (dos 16 aos 30 anos), os alunos aprendiam ética, a virtude e a política para, no 3º nível (dos 30 aos 50 anos), aprender a dialética e tornar-se Filósofo. O platonismo reverencia o mundo das Idéias, pois a realidade física, material, sensível, concreta, não alcança o “Ideal” de perfeição que somente a representação mental, abstrata (imaginem a geometria, o lógos) propicia.



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Eis que a Sabedoria reina, mas não governa, por isso, quem pensa (no todo) precisa voltar para a caverna, alertar aos amigos. Nós vamos achar que estais louco, mas sabes que cegos estamos nós, prisioneiros acorrentados à escuridão da caverna.

Abordo "O mito da caverna", de Platão - Livro VII da República.

Eis o télos (do grego: propósito, objetivo) da Filosofia e do filósofo. Agir na cidade. Ação política. Phrônesis na Pólis.

Curso de Mitologia Grega

Curso de Mitologia Grega
As exposições mitológicas explicitam arquétipos (do grego, arché + typein = princípio que serve de modelo) atemporais e universais.

Desse modo, ao antropomorficizarem os deuses, ou seja, dar-lhes características genuinamente humanas, os antigos revelaram os princípios (arché) de sentimentos e conflitos que são inerentes a todo e qualquer mortal.

A necessidade da ordem (kósmos), da harmonia, da temperança (sophrosyne) em contraponto ao caos, à desmedida (hýbris) ou, numa linguagem nietzschiana, o apolíneo versus o dionisíaco, constitui a base de toda antiga pedagogia (Paidéia) tão cara à aristocracia grega (arístois, os melhores, os bem-nascidos posto que "educados").

Com os exponenciais poetas (aedos) Homero (Ilíada e Odisséia), Hesíodo (A Teogonia e O trabalho e os dias), além dos pioneiros tragediógrafos Sófocles e Ésquilo, dispomos de relatos que versam sobre a justiça, o amor, o trabalho, a vaidade, o ódio e a vingança, por exemplo.

O simples fato de conhecermos e atentarmos para as potências (dýnamis) envolvidas na fomentação desses sentimentos, torna-nos mais aptos a deliberar e poder tomar a decisão mais sensata (virtude da prudencia aristotélica) a fim de conduzir nossas vidas, tanto em nossos relacionamentos pessoais como indivíduos, quanto profissionais e sociais, coletivos.

AGIMOS COM MUITO MAIS PRUDÊNCIA E SABEDORIA.

E era justamente isso que os sábios buscavam ensinar, a harmonia para que os seres humanos pudessem se orientar em suas escolhas no mundo, visando atingir a ordem presente nos ideais platônicos de Beleza, Bondade e Justiça.

Estou certa de que a disseminação de conhecimentos tão construtivos contribuirá para a felicidade (eudaimonia) dos amigos, leitores e ouvintes.

Não há dúvida quanto a responsabilidade do Estado, das empresas, de seus dirigentes, bem como da mídia e de cada um de nós, no papel educativo de nosso semelhante.

Ao investir em educação, aprimoramos nossa cultura, contribuimos significativamente para que nossa sociedade se torne mais justa, bondosa e bela. Numa palavra: MAIS HUMANA.

Bem-vindos ao Olimpo amigos!

Escolha: Senhor ou Escravo das Vontades.

A Justiça na Grécia Antiga

A Justiça na Grécia Antiga

Transição do matriarcado para o patriarcado

A Justiça nos primórdios do pensamento ocidental - Grécia Antiga (Arcaica, Clássica e Helenística).

Nessa imagem de Bouguereau, Orestes (Membro da amaldiçoada Família dos Atridas: Tântalo, Pélops, Agamêmnon, Menelau, Clitemnestra, Ifigênia, Helena etc) é perseguido pelas Erínias: Vingança que nasce do sangue dos órgãos genitais de Ouranós (Céu) ceifado por Chronos (o Tempo) a pedido de Gaia (a Terra).

O crime de matricídio será julgado no Areópago de Ares, presidido pela deusa da Sabedoria e Justiça, Palas Athena. Saiba mais sobre o famoso "voto de Minerva": Transição do Matriarcado para o Patriarcado. Acesse clicando AQUI.

Versa sobre as origens de Thêmis (A Justiça Divina), Diké (A Justiça dos Homens), Zeus (Ordenador do Cosmos), Métis (Deusa da presciência), Palas Athena (Deusa da Sabedoria e Justiça), Niké (Vitória), Erínias (Vingança), Éris (Discórdia) e outras divindades ligadas a JUSTIÇA.

A ARETÉ (excelência) do Homem

se completa como Zoologikon e Zoopolitikon: desenvolver pensamento e capacidade de viver em conjunto. (Aristóteles)

Busque sempre a excelência!

Busque sempre a excelência!

TER, vale + que o SER, humano?

As coisas não possuem valor em si; somos nós que, através do nôus, valoramos.

Nôus: poder de intelecção que está na Alma, segundo Platão, após a diânóia, é a instância que se instaura da deliberação e, conforme valores, escolhe. É o reduto da liberdade humana onde um outro "logistikón" se manifesta. O Amor, Eros, esse "daimon mediatore", entre o Divino (Imortal) e o Humano (Mortal) pode e faz a diferença.

Ser "sem nôus", ser "sem amor" (bom daimon) é ser "sem noção".

A Sábia Mestre: Rachel Gazolla

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O Sábio Mestre: Antonio Medina Rodrigues (1940-2013)

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