"Conhece-te a ti mesmo" - "Nada em excesso"
"Não prometa o que não sabe se poderá cumprir"
"Não prometa o que não sabe se poderá cumprir"
Das três mensagens no frontispício do Oráculo do deus da saúde e da harmonia, Apolo, foram encontrados somente fragmentos dessa última.
Dentre os temas tão caros à Psicologia, ao Direito e à História Contemporânea, por exemplo, na Segunda Dissertação de sua obra “A genealogia da moral”, o filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) esmiuçará a origem da culpa e do castigo culminando numa festa.
O homem é um ser que promete e, pelo porte da promessa que julga estar apto em poder cumprir, se afirma, equipara e entrelaça seu ego à magnitude de sua capacidade em honrar o compromisso.
Mas também é um ser que se esquece. Justamente por ser dotado dessa capacidade (de esquecer) é que esse mesmo “esquecimento” se transmutará num poder ativo, numa força que educa e disciplina: a memória.
Segundo o autor, devemos procurar aqui a origem da responsabilidade. Prometer, se esquecer e ser assaltado pela memória leva-nos a ponderar: “Esta tarefa de educar e disciplinar um animal que possa fazer promessa pressupõe outra tarefa: a de fazer o homem determinado, uniforme, regular, e, por conseguinte, calculador.”
Essa proeza coube à moral, num constante e longínquo trabalho, desde a aurora, até o presente de nossa existência: “unicamente, pela moralização dos costumes e pela camisa de força social, chegou o homem a ser realmente calculador.” Assim, pressentimos, prevemos, governamos, tornamo-nos senhores, responsáveis por nossos atos. Observe que essa responsabilidade culminará numa moralidade.
Independente, livre e soberano, o homem que pode prometer é um indivíduo de vontade própria: “possui em si próprio a consciência da liberdade e do poder, o sentimento de ter chegado à perfeição humana.”, aponta.
Por julgarmo-nos merecedores de crédito, não reconhecemos nem nos deixamos limitar pelas coisas que não podemos prometer, noutras palavras, não nos atemos ao imponderável e, seguimos ávidos: “(...) quanta confiança, temor e respeito inspirou o ‘merece (...)”. Julgamo-nos superiores aos demais, os de vontade menos potente.
Assim, o homem ‘livre’, “o senhor de uma vontade vasta e indomável, encontra nessa posse a sua escala de valores; fundado em si próprio, para julgar os outros, respeita ou despreza, e assim como venera os seus semelhantes, os fortes que [igualmente como ele] podem prometer (...)”.
Mas há os que são fortes e prometem como soberanos, somente depois de deliberar, refletir: “(...) que dão a sua palavra como tábua de mármore, que se sentem capaz de cumpri-la, a despeito de tudo, ainda a despeito do ‘destino’ (...)” e há também os fúteis, que prometem levianamente, sem serem verdadeiramente ‘donos’, pois incapazes de cumprir suas promessas.
O filósofo afirma que estar cônscio dessa liberdade rara, “e poder sobre si e o destino chegando às profundidades maiores de seu ser passou ao estado de instinto dominante (...)”. A esse instinto dominante, de: “Responder por si mesmo e responder com orgulho, dizer sim a si mesmo.”, Nietzsche identifica e nomeia ‘consciência’.
A primeva técnica de imprimir memória – mnemotécnica – é terrivelmente eficaz: “Imprime-se algo por meio de fogo para que fique na memória somente o que sempre dói.” É a memória, sobretudo quando choca, machuca, causando perda, a dor, que nos faz cumprir a promessa de não brincar com fogo, não flanar em ruas escuras, enfim, de estar atento aos perigos.
Onde há solenidade, gravidade, mistério e cores sombrias, diz ele, fica um vestígio de espanto, que noutro tempo presidia às transações, aos contratos, às promessas: “o passado, o longínquo, obscuro e cruel passado, ferve em nós quando nos pomos ‘graves’. Noutro tempo, quando o homem julgava necessário criar uma memória, uma recordação, não era sem suplício, sem martírios e sacrifícios cruentos; os mais espantosos holocaustos e os compromissos mais horríveis (como o sacrifício do primogênito), as mutilações mais repugnantes (como a castração), os rituais mais cruéis de todos os cultos religiosos (porque todas as religiões foram em última análise sistemas de crueldade), tudo isso tem a sua origem naquele instinto que descobriu na dor o auxílio mais poderoso da mnemotécnica.”
Certas ideias devem fixar-se indeléveis na memória, diz Nietzsche, a fim de hipnotizar para torná-las inesquecíveis: “o rigor das leis penais permite apreciar especialmente as dificuldades que ela [a memória] experimentou antes de se fazer senhora do esquecimento e para manter presentes na memória destes escravos das paixões e dos desejos algumas exigências primitivas da vida social.”
Em Nietzsche, o conceito essencial da “culpa” tem sua origem na ideia material de “dívida”. Culpa é dívida; seja finita ou infinita – eterna, – como a que alicerça os dogmas judaico-cristãos.
Já o castigo, “enquanto represália, se desenvolveu independentemente de toda a hipótese de livre-arbítrio e de obrigação”. Somente depois é que o animal homem se humanizou e “começou a distinguir entre ideias muito mais primitivas, por exemplo, ‘de propósito’, ‘por descuido’, ‘por acaso’, ‘com discernimento’, e os seus contrários para pô-los em relação com a severidade do castigo.”
Sendo assim, se hoje temos a ideia de que “o criminoso merece o castigo porque teria podido proceder de outro modo” é devido a uma forma muito tardia e requintada do juízo e da indução, diz o alemão.
Em tempos cegos d‘Outrora, o castigo fora empregado com fúria: “(...) não castigavam o malfeitor porque o julgasse responsável pelo seu ato; nem sequer se admitia que só o culpado devesse ser castigado (...) mas esta cólera é mantida em certos limites e modificada no sentido de que todo o dano encontre de algum modo o seu equivalente, sendo susceptível de compensar-se ao menos por uma dor que sofra o autor do prejuízo.” O ultraje que o dano excita exige reparação.
A ideia de que prejuízo e dor são equivalentes, diz Nietzsche, é tirada das relações contratuais entre credores e devedores “que são tão antigas quanto os processos que, por sua vez, nos levam às formas primitivas da compra e venda, do câmbio, comércio e relações.”
Prometer instaura a memória, compromete: “O devedor, para inspirar confiança na sua promessa de pagamento, para dar uma garantia de sua seriedade, para gravar na sua própria consciência a necessidade de pagamento sob a forma de dever, da obrigação, compromete-se, em virtude de um contrato com o credor, a indenizá-lo, em caso de insolvência, com alguma coisa que ‘possui’ [seu corpo, sua mulher, filhos, sua liberdade, a vida e até seu direito ao sossego e à paz, no túmulo] (...).”
Nesta nefasta forma de compensação (ao invés de dinheiro, bens, etc.), “concedia-se ao credor certa satisfação e gozo à maneira de compensação e pagamento, a satisfação de exercer impunemente o seu poderio com respeito a um ser reduzido à impotência, o deleite ‘de faire le mal pour le plaisir de le faire’, a alegria de tiranizar, e este gozo é tanto mais intenso quanto mais baixa é na escala social a classe do credor, quanto mais humilde é a sua condição, porque então é-lhe mais saboroso o bocado.”
Desconfortável aos espíritos mais modernos, sensíveis, o alemão perturbador constata que “Pelo castigo do devedor, o credor participa do direito de senhor: finalmente chegou a sua vez de saborear uma sensação enobrecedora, de desprezar e maltratar o que esteja por baixo dele (...). A compensação consiste, pois, na promessa e no direito de ser cruel.”
Para Nietzsche, a origem dos conceitos morais de ‘culpa’, ‘consciência’, ‘dever’, ‘santidade do dever’, ‘dor’, encontram-se nessa esfera (da crueldade). A dor compensava as dívidas simplesmente porque “o fazer sofrer causava um prazer imenso à parte prejudicada, que recebia, em compensação além do desprazer do prejuízo, o extraordinário gozo de fazer cobrar – isto era uma verdadeira festa!”.
Por nossa tendência a assumirmo-nos como credores, parece mesmo ser de indisfarçável deleite, cobrar dívidas. É comum testemunharmos quem se disponha a fazê-lo por àqueles que se recusam.
Quanto à ideia de vingança, indagando: “Como é que o fazer sofrer pode ser uma satisfação?”, explica que essa é uma verdade repugnante, sobretudo aos animais domesticados (nós): “(...) até que ponto a crueldade era o gozo favorito da humanidade primitiva e entrava como ingrediente em quase todos os seus prazeres, e, por outro lado, quão inocente e cândida parecia esta necessidade de crueldade, esta ‘maldade desinteressada’.”
Revelando algo assaz abjeto, Nietzsche denuncia: “Ver sofrer, alegra; fazer sofrer alegra mais ainda.” E reconhece que há nisto uma frase dura, uma antiga verdade ‘humana, demasiado humana’.
O funesto espetáculo público, que foi a morte do ditador líbio Muamar Gaddafi corrobora-o: “Sem crueldade não há gozo, eis o que nos ensina a mais antiga e remota história do homem; o castigo é também uma festa.” Agora, de dimensões globais.