“A coragem é a primeira qualidade humana, pois garante todas as outras”. Aristóteles
"No dia 5 de junho, um jovem solitário e desarmado invade a Praça da Paz Celestial e anonimamente faz parar uma fileira de tanques de guerra. O fotógrafo Jeff Widener, da Associated Press, registrou o momento e a imagem ganhou os principais jornais do mundo. O rapaz, que ficou conhecido como "o rebelde desconhecido" ou "o homem dos tanques" foi eleito pela revista TIME como um das pessoas mais influentes do séc. XX. Sua identidade e seu paradeiro são desconhecidos até hoje".
Não são raras as ocasiões em que preferimos nos abster de dizer a verdade. Também não são infundadas as razões pelas quais optamos por proceder assim. De fato, se ousarmos manifestar o que pensamos, tornaremo-nos, no mínimo, indesejáveis e, se considerarmos que uma das excelências humanas está justamente na capacidade de convívio, no cultivo de aprazíveis relações, nada mais coerente.
Parresía é o termo em grego para designar a coragem de se dizer a verdade, expor tudo, de se falar com franqueza. O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em sua obra “O governo de si e dos outros”, tratará desta antiqüíssima noção e seu uso político desde os primórdios da politéia (constituição) e da democracia na Grécia.
A palavra certa, proferida no momento adequado (kairós – tempo oportuno) pode denunciar injustiças, impor lucidez e também ferir. Metralhadora ou flecha certeira, dispará-las pode aniquilar moralmente um (a) poderoso (a). Eis a parresía.
Estar convicto é fundamental. Se tratar-se de mero atrevimento, levianamente irresponsável, o dano pode ser irreversível, sobretudo se houver platéia. Mesmo que se tente remediar, a ardilosidade de se ofender em público e se retratar em particular é expediente inaceitável.
A parresía é uma virtude e seu emprego pode se dar tanto na esfera pública quanto na privada. Algumas características lhe são peculiares: uma delas é a de que o destemido que confrontar o poder com a verdade esteja em condição subalterna a seu interlocutor. Não há parresía quando um pai repreende um filho, um professor contesta seu aluno ou o patrão adverte o funcionário.
Embora seja delicado sermos parrésicos na vida privada, pois há de se ter muita intimidade e confiança para que, sem magoar, sejamos autênticos, quando a verdade é proferida sem malícia, não se guarda rancores. Por isso, para nosso próprio bem, num verdadeiro amigo a parresía deve ser incentivada.
No entanto, mesmo que estejamos cônscios de que evitar o confronto, abstendo-se de uma corajosa franqueza implica numa fatura onde se discrimina hipocrisia, falsidade, fingimento e mentira, sobretudo no âmbito das relações familiares e de amizade, quem teria coragem de dizer assim, na lata, que o filho é um ingrato? Que, inconvenientes, os progenitores do cônjuge são insuportáveis? Que o cunhado é um inútil e a cunhada, a hypokrisía em pessoa? Você diria que, após a blefaroplastia*, sua amiga a faz lembrar Sartre?
Ser parresiasta (parrésico ou Parresiázesthai) não é ser irônico, crítico, persuadir ou desafiar proferindo ofensas e insultos gratuitos. Isso é mera opinião (dóxa), não necessariamente uma opinião verdadeira (dóxa alethés). E, salvo raras exceções – desde que a recusa não se dê por covardia ou tibieza –, tanta franqueza é até dispensável.
Na vida privada em desavença, território propício ao império de “futrica de comadres”, as conseqüências de dizer a verdade podem ser relativamente mensuráveis e, dependendo do caso, mesmo que desconfortável, o máximo que pode acontecer é o rompimento de relações comprovadamente desarmoniosas e inautênticas, algo capaz de revelar-se até benéfico à saúde psíquica.
Mais que uma recusa à mentira, à bajulação, peculiar na parresía é haver um alto preço a ser pago. Por isso, será no âmbito da vida profissional e cívica que optar por dizer a verdade pode acarretar implicações gravíssimas, de alcance imprevisível e inimaginável: retaliações, demissões, exílio e até mesmo a morte.
É no dizer público que a parresía é mais parresía. Foucault afirma que “as diferentes maneiras de dizer a verdade podem aparecer como formas” e analisa quatro delas: estratégia de demonstração, de persuasão, de ensino e de discussão.
Embora possa utilizar elementos de demonstração, a parresía não é uma maneira de demonstrar: “não é a demonstração nem a estrutura racional do discurso que vão definir a parresía”.
Quanto à retórica, diz ele: “a parresía como técnica, como procedimento, como maneira de dizer as coisas, pode e muitas vezes deve efetivamente utilizar os recursos da retórica (...) a parresía se define fundamentalmente, essencialmente e primeiramente como o dizer-a-verdade, enquanto a retórica é uma maneira, uma arte ou uma técnica de dispor os elementos do discurso a fim de persuadir.” Sem dúvida, a retórica não se ocupa com o fato do discurso ser ou não verdadeiro e isso é essencial à parresía.
Sobre ser uma maneira de ensinar, uma pedagogia, Foucault também refuta dizendo haver: “(...) toda uma brutalidade, toda uma violência, todo um lado abrupto da parresía, totalmente diferente do que pode ser um procedimento pedagógico. O parresiasta, aquele que diz a verdade dessa forma, pois bem, ele lança a verdade na cara daquele com quem dialoga ou a quem se dirige (...)”.
E complementa dizendo que “(...) quem diz a verdade lança a verdade na cara desse interlocutor de maneira tão cortante e tão definitiva, que o outro em frente não pode fazer mais que calar-se, ou sufocar de furor (...)”.
Seria a parresía uma maneira de discutir? Pertenceria à Erística? Éris é a deusa da discórdia (disputa, querela) e esse termo compreende “uma arte da controvérsia e do debate, desenvolvido principalmente pela Escola de Mégara (séc. V-IV)”. Não. O parresiasta não tem por télos (finalidade) discutir, mas dizer: “Há, de um lado, um dos interlocutores que diz a verdade, e que se preocupa, no fundo, com dizer a verdade o mais depressa, o mais alto, o mais claro possível; e depois, em face, o outro que não responde, ou que responde por outra coisa que não são discursos”.
Michel Foucault afirma que a parresía é uma certa maneira de se dizer a verdade, mas que esta maneira não pertence à erística (arte de discutir), nem à pedagogia (arte de ensinar), nem à retórica (arte da persuasão) nem tampouco a uma arte da demonstração: “Não a encontramos no que poderíamos chamar de estratégias discursivas”.
Pode-se servir da parresía para emitir lições, aforismos, réplicas, opiniões, juízos etc., mas o que mais a caracteriza, onde há verdadeiramente parresía, é quando não se fica impune ao pronunciá-la.
Ele diz crer que, se quisermos analisar a parresía, não devemos nos ater ao “lado da estrutura interna do discurso, nem do lado da finalidade que o discurso verdadeiro procura atingir o interlocutor, mas do lado do locutor, ou antes, do lado do risco que o dizer-a-verdade abre para o próprio interlocutor”.
Arriscado, proferir a verdade é encontrar a fúria: “é abrir para quem diz a verdade um certo espaço de risco, é abrir um perigo em que a própria existência do locutor vai estar em jogo.” De fato, é se expor pelo que o Homem mais preza: liberdade. Corajosos, Parresiázesthai estão dispostos a morrer por ela.
(*) Blefaroplastia – cirurgia plástica de pálpebras.
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Exemplo recente de PARRESÍA:
Alexandre Schwartsman
O diálogo abaixo certamente contribuiu para torná-lo ex-Economista-Chefe do Banco Santander.
O diálogo abaixo certamente contribuiu para torná-lo ex-Economista-Chefe do Banco Santander.
"Em palestra no seminário Cenários da Economia Brasileira e Mundial em 2011, o economista-chefe do Santander Brasil e ex-diretor do Banco Central, Alexandre Schwartsman, chamou de “contabilidade criativa” a cessão onerosa de 5 bilhões de barris da União para a Petrobrás.
Ao ter a palavra no evento, o presidente da Petrobrás, José Sergio Gabrielli, defendeu o processo e disse que Schwartsman tinha chamado “indiretamente” o processo de contabilidade criativa.
- Não foi indireto não – retrucou Schwartsman, que ainda estava na mesa principal do evento, promovido pela Fundação Getulio Vargas (FGV), em parceria com o Valor.
- Porque é verdade – acrescentou Schwartsman.
Gabrielli voltou a responder ao economista, lembrando que a Petrobras recebeu R$ 132 bilhões pela capitalização e pagou R$ 74 bilhões pelos 5 bilhões de barris.
- Se isso não é caixa, eu não sei o que é caixa – questionou o executivo.
- Caixa é dinheiro, não é promessa – voltou a responder Schwartsman.
Irritado, Gabrielli voltou a questionar o economista do Santander.
- Não é promessa nenhuma. São fatos. Ele comprou ações por um determinado valor e recebeu dinheiro de outro – afirmou.
- Cadê o dinheiro? -, voltou a perguntar Schwartsman.
- Tá no Tesouro – afirmou Gabrielli.
-Só na cabeça dos contadores do Tesouro – encerrou o economista, recebendo os aplausos de parte da platéia.
Em sua apresentação, Schwartsman tinha criticado a política fiscal expansiva do governo e afirmado que “entra qualquer coisa” no cálculo do superávit primário e que “houve criatividade contábil” para fechar as contas.
O economista do Santander comentou ainda que o baixo nível de poupança do país não se deve ao elevado consumo das famílias, mas sim do governo. Ele disse não acreditar que vá ocorrer “tão cedo” uma redução dos gastos do governo.
- Esperaria por isso sentado e em uma posição bem confortável.
Na sua avaliação, o superávit primário foi, na realidade, de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB, soma dos dos bens e serviços produzidos no país). Cálculos de outros economistas renomados sugerem, citou Schwartsman, algo entre 0,5% e 1%.
O ex-diretor do BC disse que o corte de R$ 50 bilhões anunciado pelo governo deveria ter sido maior, entre R$ 85 bilhões e R$ 100 bilhões.
Segundo os dados oficiais do governo, o país fez uma economia de R$ 101,696 bilhões, ou 2,78% do PIB em 2010. Como a meta era chegar a no mínimo 3,1% do PIB, o governo teve de descontar parte dos investimentos feitos pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – R$ 11,7 bilhões (0,32% do PIB) – para fazer a conta fechar, como aconteceu em 2009. Nessa conta, entrou uma receita extra de R$ 32 bilhões da capitalização da Petrobras.