Assim como a palavra “cínico”,
hoje em dia, não se refere mais à escola filosófica fundada por Diógenes de
Sínope (Movimentos filosóficos helenísticos: os cínicos, AQUI.), mas designa alguém dissimulado, o termo “epicurista”
nomeia erroneamente alguém “escravo dos prazeres”, especialmente os sexuais,
mas para essa escola, o prazer, que é o valor supremo, na verdade é a ausência
de dor e de sofrimentos.
O epicurismo surgiu na mesma
época que o estoicismo de Zenão (Movimentos filosóficos helenísticos: o estoicismo, AQUI.) e foi fundado pelo
filósofo grego Epicuro (341 a.C.) que, por volta dos 35 anos se estabeleceu em
Atenas e adquiriu um terreno cercado por jardins para erigir sua escola, que ficou
conhecida como “O Jardim”, onde veio a ensinar até os setenta anos.
Segundo Néstor Luis Cordero, tanto
Epicuro quanto o epicurismo foram longe e, em meados do séc. II a.C., o
epicurismo instalou-se em Roma: “(...) e o primeiro filósofo que escreveu em
uma língua não grega foi um epicurista, Lucrécio”, aponta o estudioso.
Também como Diógenes e Zenão,
Epicuro não encontrou as respostas que buscava nas escolas já estabelecidas (na
Academia, de Platão ou no Liceu de Aristóteles), pois elas colocavam a
felicidade como meta de uma longa série de estudos, e para o imediatista Epicuro,
“o ser humano vive ‘hoje’, e a filosofia que conduz à felicidade, é uma
atividade urgente, quase um serviço de primeiros socorros”, ressalta Cordero.
Epicuro escreveu muito, mas dele chegaram
apenas três cartas e duas coleções de máximas ou sentenças, conhecidas
tardiamente e que são chamadas de “as Máximas capitais” e “Sentenças
Vaticanas”, guardadas na biblioteca do Vaticano.
Para e escola epicurista, a causa
da infelicidade humana é sermos vítimas “do que se diz”, principalmente sobre
os deuses, a morte e o sofrimento.
Para eles, se escutarmos a voz da
natureza, tais temores desaparecem, mas para isso é necessário filosofar. E
filosofar seriamente e não meramente fazer de conta: “Não se trata de aparentar
ter uma boa saúde, diz Epicuro, mas de estar saudável de fato”.
A filosofia é como um medicamento
que deve ser administrado o quanto antes: “Que ninguém, quando jovem, tarde em
filosofar, nem, quando velho, se canse de filosofar, pois nunca é nem demasiado
cedo, nem demasiado tarde para obter a saúde da alma”, roga Epicuro, na “Carta
a Meneceu”, disponível abaixo.
Cordero afirma que para a escola
epicurista, o conhecimento da verdadeira natureza das coisas constitui a física
(ciência da phýsis), e a aplicação
dos conhecimentos que dela são obtidos fazem parte da ética (lembremo-nos, que os
estoicos ressaltavam a lógica).
Epicuro nomeia o conhecimento
dessa realidade de “fisiologia”, etimologicamente “conhecimento da phýsis” e aponta que esse conhecimento
leva à felicidade, que é o “viver bem”.
Evitando prolongar-se nas
investigações, os epicuristas adotaram a física dos atomistas, estabelecendo
como princípios da realidade as partículas indivisíveis, os “átomos” e o espaço
no qual eles vagueiam, em todas as direções.
Para Epicuro, esclarece Cordero,
apenas do ponto de vista metafórico pode-se falar de um “para cima” e de um
“para baixo” no movimento desses átomos no vazio e pode-se então imaginar uma
“queda” dos átomos: “Em função desta queda, atribui-se a Epicuro a possibilidade
de que, em algum momento, se produza um “desvio” na trajetória, o que
justificaria a liberdade da vontade”.
Tanto a natureza quanto os seres
humanos, tudo é constituído por átomos e vazio e para os epicuristas a alma
também é material: “Aqueles que afirmam que a alma é incorpórea, falam para não
dizer nada, pois, se o fosse, seria incapaz de padecer ou de atuar sobre
qualquer outra coisa” (Epicuro, em “Carta a Heródoto”, 67).
Em seu poema, o epicurista romano
Lucrécio afirma: “A alma está contida na totalidade do corpo; ela é seu
guardião, pois assegura sua salvação; raízes comuns os unem mutuamente, e não
pode separá-los sem destruí-los”.
Para Epicuro, aquele que vive bem
encontra calma e serenidade e isso ocorre, quando a filosofia nos cura das
principais doenças da alma: o medo dos
deuses, o medo da morte, o medo do sofrimento.
Quanto aos deuses, ressalta o intérprete, se sabemos o que são, não há
nada a temer. Mas só temos “suposições” e não “pré-concepções” e, como Cícero
diz: “somente ele [Epicuro] viu com clareza que os deuses existiam, já que a
própria natureza imprimiu sua noção no espírito dos homens. Com efeito, qual é
a razão humana que não tem, sem que se lhe precise ensinar, uma pré-concepção
dos deuses?”.
Sendo assim, as imagens dos
deuses não entram pelos sentidos, mas antes, são percebidas nos sonhos: “Mas a
pré-concepção dos deuses torna-se efetiva no interior de cada indivíduo. Os
deuses existem objetivamente, mas apenas se consolidam quando se forma a
pré-concepção, e esta se produz em uma parte da alma”.
Para os epicuristas, os deuses
são modelos de conduta individuais, pois cada indivíduo elabora sua “pré-concepção”
em função da vida bem-aventurada a que cada um aspira, aponta o autor.
E isso é assim porque “os deuses são
seres vivos incorruptíveis e bem-aventurados”, e não deve se lhes atribuir nada
que prejudique esse estado, diz Epicuro.
Os deuses existem, então, tal
como os concebemos na pré-concepção deles, mas não existem da maneira que se
“supõe” que existam, quer dizer “como crê o vulgo”, que se apega a
“suposições”, ressalta Epicuro.
Epicuro contesta a crença na
existência de deuses tradicionais, os que estão a todo tempo nos observando,
julgando e castigando e no chamado “deus dos filósofos”, que se encarregam
primeiro de produzir e depois de regular a ordem universal: “O mundo não foi
fabricado pela divindade, uma vez que é completamente defeituoso”, escreve o
epicurista romano Lucrécio.
Epicuro insistiu que não é ímpio quem
elimina os deuses da massa, e diz-se que Lucrécio assimila essas opiniões da
massa à da religião de seu tempo, enaltecendo-o como “um grego que teve a
coragem de olhar de frente a religião”, que com seu peso “esmagava a espécie
humana”.
Os deuses, para Epicuro, tomam
forma, ou seja, adquirem “realidade”, apenas no interior do ser humano e, mesmo
assim, têm uma consistência muito tênue (o que o aproxima do ateísmo) e essa
certa “impotência” divina garante que sejam incapazes de influir na vida
humana. Se for assim, por que temê-los? O temor aos deuses não tem sentido,
conclui.
Quanto à morte, temê-la é causa de grande infortúnio, mas um
conhecimento preciso da realidade dela dissipa tal temor: “Acostuma-te a pensar
que a morte não é nada para nós, pois todo bem e todo mal residem na sensação,
e a morte é a privação da sensação”, roga Epicuro.
A sensação é a base do
conhecimento e não experimentamos nenhuma sensação da morte, portanto, não
devemos temê-la, pois não podemos senti-la: “Quando estamos vivos, a morte não
está presente, e quando ela estiver presente, já não estaremos vivos”, diz
Epicuro.
A opinião de que a morte nos faz
sofrer não tem fundamento, é mera suposição, o filósofo francês Michel de
Montaigne esclarece dizendo: “Na realidade, o que mais dizemos temer na morte é
a dor, seu pregoeiro habitual”.
Mas, a morte e os demais
sofrimentos podem esperar, prossigamos.
EPICURO (341 a.C.)
CARTA SOBRE A FELICIDADE (a Meneceu)
Que ninguém hesite em se dedicar
à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque
ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do
espírito.
Quem afirma que a hora de
dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se
dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz.
Desse modo, a filosofia é útil
tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se
rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o
jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é
necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que,
estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.
Pratica e cultiva então aqueles
ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza de que eles constituem os
elementos fundamentais para uma vida feliz.
Em primeiro lugar, considerando a
divindade como um ente imortal e bem aventurado, como sugere a percepção comum
de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua
imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo
que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.
Os deuses de fato existem e é
evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria
das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm
dos deuses. Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim
quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos
do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões
falsas.
Daí a crença de que eles causam
os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados
pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com os seus
semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles.
Acostuma-se à ideia de que a
morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações,
e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência de que a morte
não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer
acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.
Não existe nada de terrível na
vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em
deixar viver. É tolo, portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada
desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que
não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo
esperado.
Então, o mais terrível de todos
os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando
estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte
está presente, nós é que não estamos.
A morte, portanto, não é nada,
nem para os vivos nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao
passo que estes não estão mais aqui. E, no momento, a maioria das pessoas a foge
da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males
da vida.
O sábio, porém, nem desdenha
viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não
é um mal. Assim, como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante,
do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que
breve.
Quem aconselha o jovem a viver
bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de
agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado
em honestamente morrer. Mas pior ainda é aquele que diz: bom seria não ter
nascido, mas uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas do
Hades.
Se ele diz isso com plena
convicção, por que não se vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for
esse realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi um frívolo em
falar de coisas que brincadeira não admitem.
Nunca devemos nos esquecer de que
o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos
obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos
desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.
Consideremos também que, dentre
os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há
uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há
alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar
corporal, outros, ainda, para a própria vida.
E o conhecimento seguro dos
desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e
para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em
razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e
do medo.
Uma vez que tenhamos atingido
esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo não tendo que ir
em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma
e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer
quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa
necessidade não se faz sentir.
É por essa razão que afirmamos
que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Com efeito, nós o
identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele
praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de
acordo com a distinção entre prazer e dor.
Embora o prazer seja nosso bem
primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que
evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes
desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos
prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito
tempo.
Portanto, todo prazer constitui
um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos;
do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas.
Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o
critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como
se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.
Consideramos ainda a
auto-suficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas
para nos contentarmos esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente
convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela;
tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.
Os alimentos mais simples
proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se
remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo
quando ingeridos por quem deles necessita.
Habituar-se às coisas simples, a
um modo de vida não luxuoso, portanto, não é só conveniente para a saúde, como
ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as
adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência
rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para
enfrentar sem temos as vicissitudes da sorte.
Quando então dizemos que o fim
último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que
consistem no gozo dos sentidos, como acreditam as pessoas que ignoram o nosso
pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao
prazer que é a ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma.
Não são, pois, bebidas nem
banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes
ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame
cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que
remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma
conta dos espíritos.
De todas essas coisas, a
prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ele é mais preciosa do
que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela
que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça sem
felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a
felicidade é inseparável delas.
Na tua opinião, será que pode
existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos
deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que
bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está
nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremos ou dura pouco, ou só
nos causa sofrimentos leves?
Que nega o destino, apresentado
por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por
necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é
incoercível, o acaso instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual
nos acompanham a censura e o louvor?
Mais vale aceitar o mito dos
deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas; o mito pelo menos nos
oferece a esperança do perdão dos deuses através das homenagens que lhes
prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável.
Entendendo que a sorte não é uma
divindade, como a maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao
acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione aos
homens nenhum bem ou nenhum mal
que sejam fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o
início de grandes bens e de grandes males.
A seu ver, é preferível ser
desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom
projeto não chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau.
Medita, pois, todas estas coisas
e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus
semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo,
mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente
a um mortal o homem que vive entre bens imortais.
Epicuro *
Do livro: “Carta sobre Epicuro”,
Editora Unesp, ed. bilíngue, grego/português, trad. Álvaro Lorencini e Enzo Del
Carratore, 1997, SP