“As
novas leis da cidade são arbitrárias e já não observam o equilíbrio cósmico.”
Néstor Luis Cordero
Sobre propostas que fundamentem
nosso agir, sabemos algo dos hippies,
dos punks e dos grunges, por exemplo, mas talvez saibamos pouco sobre os movimentos
que surgiram na Grécia, como os cínicos, estoicos e epicuristas. Ponderemos
sobre os cínicos.
Segundo o estudioso Néstor Luis
Cordero, em sua obra “A invenção da Filosofia”, a proposta dos cínicos se inspira
em uma dicotomia que surgiu na época da sofística, entre os partidários das
leis da pólis (consagração dos
costumes) e os defensores das leis da natureza (phýsis).
Cordero afirma que tanto Platão
quanto Aristóteles concebiam que a excelência humana é alcançada no exercício
político, ou seja, na participação social, na pólis.
A pólis de Platão e Aristóteles foi uma estrutura social formada por
um conjunto de cidadãos unidos por leis estabelecidas por seus membros e
“consolidadas por organismos coletivos de poder, o que supõe uma autonomia
[...] total”.
A Atenas de Aristóteles, no
entanto, testemunhou o desmoronamento dessa estrutura quando, derrotada na
Batalha de Queroneia (338 a.C.), passou a ser parte do império macedônico de
Felipe, pai do lendário Alexandre, o grande: “As leis de uma cidade ocupada já
não são autônomas, e a democracia que subsiste é somente formal”.
Na “época helenística”,
progressivamente foram desaparecendo as pequenas cidades-estados, reduzidas ao
denominador comum identificado, genericamente, como sendo a “Grécia”. E as
coisas continuaram assim, inclusive séculos depois, quando essas
cidades-estados passaram a integrar o Império Romano.
Sendo a filosofia, como bem
salienta o autor, um reflexo de seu tempo, testemunha-se uma sutil alteração:
“o cidadão (polítes) transforma-se em
cidadão do universo (kosmopolítes)”.
Perdido em meio à globalização
imperial que o cerca, o indivíduo dirige seus pensamentos para seu interior, em
estabelecer os meios de garantir sua plenitude, sua felicidade, pois “A
participação natural nos assuntos da cidade, fonte da excelência humana”,
enfraqueceu.
A nova maneira de filosofar não
se pauta mais no modelo da harmonia que se poderia encontrar na pólis, mas no que se encontra à
disposição na própria natureza. O tecido da “lei” da pólis (que se dá quando um
costume, um hábito se torna objetivo, normativo) se esgarça.
Nesse momento histórico e dos
povos, as leis da cidade tornam-se arbitrárias, corruptíveis, inconstantes, enquanto
as leis da natureza são imutáveis. Encontrando nela um “norte”, as escolas
helenísticas conclamavam que era preciso viver de acordo com a natureza, “pois
somente ela determina o útil e o nocivo”. Obviamente, cada escola (cínicos,
estoicos e epicuristas) buscou interpretar a natureza a seu modo.
Os cínicos (do grego kynikós = como um cão), os primeiros a
testemunhar e reagir à perda da autonomia de Atenas, surgiram durante o reinado
de Alexandre e tomaram a palavra “natureza” ao pé da letra, desconsiderando as
normas sociais e identificando-se especificamente com os cães de rua.
Segundo Cordero, o cínico era um
filósofo desapegado que vivia de maneira selvagem, marginal, tal qual um cão.
Espelhavam-se na figura de
Sócrates, de quem Antístenes – fundador do cinismo – teria sido ouvinte. Filho
de uma escrava, Antístenes não possuía cidadania ateniense, necessária para
adquirir uma propriedade (como Platão), nem fortuna pessoal para alugar uma
(caso de Aristóteles); por isso, contentou-se em ocupar um ginásio abandonado conhecido
como Cinosargo (mesmo nome do fiel cão de Ulisses).
Discípulo de Antístenes, Diógenes
da cidade de Sínope é o lendário propagador do movimento. Teria sido por volta
de 380 a.C. que Diógenes, fugindo de Sínope por falsificação de moedas,
ingressou ao grupo dos “do Cinosargo”.
Diógenes, como Sócrates nada
escreveu, tornou-se um personagem sobre o qual muitos escreveram. Mais largado
ainda e com muito mais bom humor, desdenhava os superpoderosos monarcas
enxergando-os como míseros escravos. Hilárias são as frases que se atribuem a
ele: “Já que nos tratam como cães, agiremos como tais”.
Rechaçando tudo o que era
supérfluo, Diógenes trazia consigo apenas um grande jarro (semelhante a
um barril), seu tríbon (um manto grosseiro que usava tanto para se
cobrir quanto para dormir) e uma lanterna acesa até mesmo durante o dia,
que dizia trazer para ajudá-lo a procurar um homem que fosse justo.
Pioneiro na crítica à sociedade
de consumo, ele desprezava as pessoas que dependiam de seus bens e tornavam-se
escravas deles e das convenções e regras sociais que certa posição exigia. Não
tardou a angariar seguidores que o imitassem.
Semelhantes aos cães, que
satisfazem suas necessidades, inclusive as sexuais, como lhes apraz, os cínicos
primavam pela falta de pudor (anáideia)
contra a falsa moral vigente. Após masturbar-se em praça pública, Diógenes
lamentava: “Pena que a fome não passe alisando o estômago”. Conta-se que quando
pessoas “respeitáveis” fugiam de sua presença, desprezava-os ironizando: “Não
temam, nós cães não comemos carniça”.
Essa e muitas outras sacadas
espirituosas de Diógenes estão disponíveis em nosso Blog, inclusive a mais
famosa que ousou proferir ao próprio Alexandre. Reza a lenda que após ouvir do
poderoso que lhe concederia o que desejasse, Diógenes pediu apenas que ele
saísse da frente do sol que o aquecia. O temido conquistador teria proferido:
“Se não fosse Alexandre, gostaria de haver sido Diógenes”.
Por não ter uma doutrina,
instituição ou tratados específicos, o movimento cínico foi tomado mais como
mera provocação, uma filosofia de ocasião; mas há controvérsia, pois segundo
Cordero: “os cínicos representam fielmente o sentido que teve a filosofia desde
suas origens: assentar as bases de um modo de vida.”.
Privilegiando uma didática
provocativa, “o cínico quer despertar a consciência da massa globalizada vítima
de necessidades impostas por falsos valores [...].”.
O credo cínico proclamava:
“necessário é aquilo que satisfaz a vida do ser humano; o supérfluo, ao
contrário, faz dele um escravo que destrói a natureza e que termina por acabar
com os recursos naturais”.
Na theoría dos cínicos, a excelência humana consiste na obtenção da
felicidade, esse é o propósito (télos)
da vida. E sem delongas: “Infeliz, tu pretendes filosofar e arruínas com longos
discursos o melhor da vida humana”, repreendia Diógenes.
Como atalho, os cínicos propõem a
áskesis, uma espécie de exercício
cotidiano que supõe pôr em prática uma força física e moral. Assim como a
prática conduz a excelência, a áskesis
permite ao infeliz tornar-se feliz: somos infelizes porque permitimos que nos
imponham falsos valores e falsas metas, devemos então suprimir os dois pilares
sobre os quais se apoia a sociedade: o luxo e o prazer, que tanto
causam sofrimentos e infortúnios.
O afã por prazeres não encontra
limites e debilita o caráter. Esforça-se e desgasta-se muito para
satisfazê-los. Na verdade, o homem teria uma personalidade forte se fosse capaz
de resistir às privações e sofrimentos.
A palavra sofrimentos (pónos) – diz Cordero –, significa uma
“experiência dolorosa” (daí “pena”): “Quando esse tipo de experiência se acaba,
sobrevém o único tipo de prazer admitido pelos cínicos: a ausência de
sofrimento.”. Os cínicos praticavam a áskesis
para poderem suportar as penas (pónoi).
Afirma também que a áskesis apoia-se sobre três pilares: autossuficiência, liberdade e apatia.
A autossuficiência é a situação de quem se satisfaz com o que tem.
Isso conduz à liberdade, pois o
indivíduo torna-se independente, não se submetendo às obrigações externas.
Mas o autor salienta que há dois
tipos de liberdade: a recusa das
convenções (o que permitiria fazer o que se quer) e a aceitação voluntária de fatos que não dependem de nós (tsunamis,
doenças, morte).
Chegamos então ao 3º pilar da áskesis: para se enfrentar os reveses
inerentes à vida eles propõem a apatia,
a ausência de páthos, de emoção e de
paixão.
Por fim, avaliemos: escolhemos
viver como estamos vivendo ou nos deixamos manipular por valores impostos pelos
outros?