São
Jerônimo (que traduziu a bíblia do hebraico e aramaico para o grego e o latim) por
Caravaggio (1605-6)
Galleria Borghese, Roma.
"A vaidade é um princípio de corrupção”. Machado de Assis
Galleria Borghese, Roma.
"A vaidade é um princípio de corrupção”. Machado de Assis
A todo o momento, morrem pessoas.
Na mitologia grega, foi dessa justificativa que se valeu o soberano do Olimpo,
Zeus, imbuído de convencer seu irmão, Hades, a aceitar presidir o reino dos
mortos: “Governarás sobre um reino no qual, a todo instante, não cessará de
chegar novos súditos”.
Recentemente, tivemos a notícia
da partida de algumas personalidades famosas, na área da literatura, da
academia, da política e do meio empresarial: Ariano Suassuna, Rubem Alves, João
Ubaldo Ribeiro, Vladimir Garcia Magalhães, Robin Williams, Eduardo Campos e Antônio
Ermírio de Moraes, para citar alguns.
Morrer é inevitável. E é justamente
essa consciência da finitude o que nos define. Temos, uns mais, outros menos,
uma espécie de prazo de validade aqui no mundo. Isto posto, como nos pautarmos
por valores que garantam uma vida feliz, bem sucedida? O que podemos legar ao
futuro quando a inevitável nos arrebatar?
Ponderar sobre a morte é,
paradoxalmente, ponderar sobre a vida e nas “tentações” que se apresentam a nos
iludir, nos desviando do caminho mais virtuoso e edificante. Um desses engodos
está na vaidade: “humano, demasiado humano”, como diria o filósofo alemão
Friedrich Nietzsche. E é sobre uma lição acerca da vaidade, representada num
movimento artístico específico, que iremos versar. Esse movimento chama-se
“Vanitas”.
Harmen
Steenwijk – 1640
O tempo muda, e com ele, emergem
novos conceitos, que respaldados pelo “zeitgeist” (Espírito do tempo) vigente
impõe-se como modismo. Alguns modismos, como os “Vanitas”, tornam-se
“clássicos”.
Em tempos d’outrora, distintivo
(“chique”) mesmo era pendurar um enigmático “Vanitas” na parede da biblioteca
(ocupada hoje pelo home-teather) e ter assim, assunto para se encetar uma boa
prosa filosófica (vida, morte e tempo), enquanto se finalizava o agradável
jantar saboreando um licor.
Pieter
Gerritsz – 1630
Mas, o que é um “Vanitas”? Um
“Vanitas” (do latim, vacuidade, futilidade, algo vão, sem valor) é a
representação dramática de um gênero singular de natureza morta surgida no
norte da Europa e países baixos, especialmente no século XVII, com forte
conteúdo simbólico de cunho moralizante que busca chamar a atenção para o quão
efêmera é a vida, fugidios seus prazeres, vãs suas glórias e para a
irreversibilidade dessa condição que nos distingue do Criador: mortais.
Com o enaltecimento dos
“Vanitas”, o gênero “natureza-morta” – o patinho feio da pintura –, tão
apreciado pelos holandeses, foi alçado a patamar de honra.
Hendrik
Andriessen – 1650
A morte era uma realidade muito
próxima e os pregadores calvinistas eram fascinados pelos interditos do Livro
de Eclesiastes, no Velho Testamento. Do ponto de vista filosófico, arrisco
dizer que o gênero é “Existencialista”.
Uma obra dessa natureza, que é um
imperativo chamado para reflexão sobre valores, expressava que a alma do
detentor estava consciente da insignificância da vaidade humana. O paradoxo é
que se pagava muito caro por tamanha insígnia de sapiência: ostentar um
“Vanitas” era caríssimo, acessível somente às pessoas de posses.
Pieter
Claesz – 1625
Nesse tipo de obra, explicitando
perecividade e finitude, observamos a presença de figuras que aludem e
contrapõe: 1) vida terrestre espiritual e contemplativa e, 2) vida terrestre
hedonista, luxuriosa e sensual.
São recorrentes, então, insígnias
de poder (colunas clássicas, coroas,
tiaras, mitras, medalhas, elmos, escudos, emblemas heráldicos, espadas e outros
adereços que remetam à honra), símbolos de fortuna
e riqueza (moedas de ouro ou prata, tecidos requintados, sedas, veludos,
bordados e brocados, pedras preciosas, pérolas, conchas e outros objetos preciosos),
referências aos prazeres libidinais e
luxuriosos (espelhos, cartas de baralho, vinhos, instrumentos musicais tais
como flautas e charamelas), alusões à perecividade
(flores frescas ou já murchando, frutas suculentas ou apodrecidas, relógios,
ampulhetas, bolhas de sabão, borboletas, fio de vela já se apagando), além dos
emblemas de imortalidade (livro) e
de finitude (o crânio humano),
impondo o inexorável destino comum a todos nós, que é morrer.
Adriaen
van Utrecht – 1642
Condenador dos prazeres mundanos,
pois erigido sob o solo do discurso de cunho religioso moralizante de apelativo
fervor puritano, o melancólico “Vanitas” encontra respaldo na Bíblia
judaico-cristã.
De lá para cá, muitas caveiras se
passaram e o uso alegórico do crânio ganhou outros significados (que o diga o renomado
estilista brasileiro, Alexandre Herchcovitch). E isso porque, a visão que temos
da morte passa por “n” perspectivas: temor, reverência, respeito, angústia,
perturbação, sarcasmo, cinismo, deboche e até provocação.
Diante dela, difícil é ser indiferente.
Independente disso, intensamente expressiva em suas representações, a morte
paira a espreita, triunfa sobre as frivolidades mundanas, sejam quais forem e,
alheia ao que pensemos que seja, é o que é.
Edwaert
Collier – 1693
Ao passar todo esse sermão
através das pinceladas, um “Vanitas” pretende
repreender a ignorância sobre os falsos valores, advertindo que: “(...) os seus
vícios e horrores, as suas paixões desonestas, desvairadas de cegas, funestas,
os seus apetites venais insaciáveis, as suas perigosas irracionalidades, as
suas pulsões inconfessáveis (...)”, tem um fim. Esse é o drama.
A arte, como alertava o poeta
grego Píndaro (518-438 a.C.), lembra ao homem o que ele deve ser. Assim como o
desvario da nobreza dos séculos XVII foi sacudido pelos “Vanitas”, a atual
sociedade líquida (termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman), voltando a
contemplar essas obras e, ponderando sobre esses ensinamentos, se enriquecerá,
tornando essa breve passagem, mais digna e honrosa possível.
Philippe
de Champaigne – 1671
(*) “Vanitas vanitatum et omnia Vanitas” (Vaidade das vaidades, tudo é vaidade) Eclesiastes.
Um comentário:
Mais uma vez, um belíssimo texto, que nos põe a pensar sobre a impermanência e as várias nuances da experiência humana de estar no mundo.
Muito grata a vc, por me ajudar a plantar melhores sementes!
MaVi
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