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luciene felix lamy EM ATO!

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1 de dez. de 2015

Tragédia, Terror e Ética



Horrorizados diante do medo que os atentados terroristas suscitam, convém nos debruçarmos sobre o quê – por força da atualidade da sua presença no presente – ecoa de nossa herança trágica grega.



Segundo Aristóteles (384 – 322 a.C.), a tragédia grega é semente do que denominamos ética, ou seja, o embrionário fundamento da ação humana ajuizada, que intenta ao como devemos agir.

De início, vale esclarecer que ética (ethos) é constituída do conjunto de costumes acordados (moral) pelos membros de uma sociedade. Costumes esses que se transformam, alterando (e alternando) nosso modus vivendi e, consequentemente, nosso éthos.

Assim, uma vez assentados, ainda que provisoriamente, pois a sociedade está em constante vir-a-ser, nossos costumes morais tornam-se habituais, erigindo nosso habitat (ambiente).

Obviamente, nossa moral varia conforme os valores – ideias e ideais – da sociedade à qual nos inserimos por “pertença”. Por conta disso, seremos mais ou menos amparados, nutridos, física e psiquicamente aptos e úteis ao desenvolvimento, legando avanços técnicos e científicos.

Elegendo por télos (propósito, objetivo) o desenvolvimento, a economia (oikós = casa + nomós = norma, lei) impõe-se, recolhendo, selecionando e respaldando em lógos (ratio) o que estabelecemos como sendo uma moral (costume, hábito) útil ou inútil às nossas aspirações.

Resumindo, a economia (“norma da casa”), visando os benefícios da prosperidade (leia-se segurança e conforto) dita os costumes convenientes a serem adotados (moral), sendo que esses costumes, uma vez tornados habituais, constituirão a ética de determinada sociedade, cujo sentido se assenta na noção de hómoios (semelhante).

Os ditames econômicos (normas e leis que explicitam os valores de uma sociedade) fluem e desembocam naquilo que em Filosofia considera-se a “cereja do bolo”, a saber, a ÉTICA.

Uma vez supridos nossos anseios básicos, primordiais (por alimentos, vestimentas, moradia, educação e lazer, por exemplo), elevamos nosso patamar de necessidades, partindo em busca do domínio (leia-se exploração) sobre os demais.

O poder, ou seja, a supremacia de um indivíduo, de um grupo ou até mesmo de uma nação sobre outra se dá através da colonização e imposição de valores (morais e éticos), explicitados na adoção dos signos exteriores das ideias e dos ideais (valores) do conquistador pelo conquistado. Concepção, fabricação e comercialização de equipamentos bélicos servem a esse nefasto propósito ancestral.

A recusa (resistência) à adoção dos valores por parte daqueles que se intenta subjugar é tida como subversão, rebeldia, oposição. Assim, sobre todos aqueles que ousam insurgirem-se (contra os pais, o cônjuge, o grupo religioso ou a nação) paira o risco da punição.

No entanto, não é somente através da economia que nossos valores emergem. É sabido o quanto as religiões também fomentam ideais e constituem por si só – valor em si. Mais até que a geografia, a língua, a gastronomia, o vestuário e a arquitetura, por exemplo, é àquilo no que acreditamos em comum que respalda e alicerça o mais significativo sentimento de pertença. Através da adesão religiosa comungamos de nada menos que nossa crença, nossa Fé.



No caso específico do Islã, a insistência num governo pautado pelo fervor religioso – impondo a soberania de Allah – é absolutamente incompatível com sistemas de governos liberais, digamos, de natureza mais laica e democrática.

Sabemos que o medo nasceu com o homem e que esse, frágil e desprotegido, dependeu de precaver-se com três ou quatro pedras na mão para garantir tanto sua própria vida, quanto para assegurar a sobrevivência daqueles que dependiam de si.

Antes de evoluirmos ao atual Código Penal, temos nas tragédias gregas o arcaico registro das “leis escritas” respaldando àquilo que entendemos por Justiça (conceito abstrato que abarca harmonia, simetria e equidade), à qual acessamos através das Ideias.

A tragédia, segundo Aristóteles, gênero educativo por excelência, explicita uma cadeia de causa e efeito, tem uma conotação cívica e mítica.

Buscava-se, através dessas comoventes e catárticas encenações teatrais, instruir a população sobre quais eram os limites que deveriam ser respeitados – evitando assim a desmedida (hýbris) – a fim de não atrair uma mancha (míasma) sobre si, seus descendentes e a comunidade à qual se pertence.

Como ainda não havia, na época das tragédias gregas, a consciência de um “eu” individualizado, consciente de suas ações, a penalidade por algum desvio (erro) recaia sobre toda comunidade.

O que está em voga é justamente a cegueira (atér), a desmedida (hýbris) e a penalidade à qual estamos sujeitos, ou seja: o sacrifício de inocentes, constituindo a purificação (kátharsis) que, encenada, não redime, mas ensina.



Hoje, no entanto, diferente da tragédia grega “experiência emocional-perceptiva e ajuizadora”, não há mais a expiação para retirada da mancha (míasma) da comunidade, pois para tanto, o que a motiva teria necessariamente que cessar. Mas, como interromper a “machina fatalis” de uma ideologia em curso?

Amalgamando o social, o político e o religioso em seu éthos, fundamentalistas decepam cabeças, explodem-se matando civis e, excedendo todos os limites, impõem covardemente a barbárie, por ódio a tudo e a todos que rejeitam suas crenças.

Infelizmente, não há sequer vislumbre de solução possível para afastar essa “força primordial que sempre permanece, a despeito da mudança das gerações e da história dos povos”. O anseio ancestral de impor a ferro e fogo (a famosa “vontade de potência” nietzschiana) valores morais e, consequentemente, éticos – quer sejam de cunho econômico e/ou religioso – aos demais, torna o mundo cada vez mais desumano, cruel.

Talvez por isso “Aristóteles tenha dito, sabiamente, que os homens sempre guerrearão para deixar de guerrear, comerão para deixar de comer, amarão para deixar de amar, no movimento incessante da potencialidade, pois não nos é dado o repouso, pertencentes que somos à ordem do movimento contingente”, como cita a especialista Rachel Gazolla.

E, se “Nas antigas comunidades ninguém pode permanecer manchado por um erro sem atingir a si mesmo e a todos”, a atual sociedade liberal, individualista por excelência, rompeu esse olhar para o Todo, pois o culpado nem sempre sente culpa pelo desdobramento de suas ações.

Considerando que uma das dýnamis (força, potência) do Oriente está no petróleo, de onde provém a riqueza que azeita a engrenagem da guerra, é possível sim, que detenhamos alguma parcela de participação (mesmo que mínima e à revelia) no financiamento da propagação de todo esse terror.

Como membros do Coro das antigas tragédias gregas, indaguemos a nós mesmos: estaríamos dispostos a mudar nossos costumes, nossos hábitos (moral) já comodamente assentados, a fins de erigir uma nova ética?


Confiram, no youtube, o vídeo do Prof. Mario Sérgio Cortella sobre "O que é a Ética?".



Referência bibliográfica:

Pensar Mítico e Filosófico - Estudos sobre a Grécia Antiga (Para não ler ingenuamente uma tragédia grega), Rachel Gazolla. Edições Loyola. São Paulo, SP (2011).





1 de nov. de 2015

O mais perverso e, paradoxalmente, o mais sublime do Universo!



Eis o relatório preliminar sobre nós que um visitante de outra galáxia acaba de enviar a seu grupo:

Estimados, terráqueos são fascinantes! A maioria é cônscia da finitude. Embora essa consciência não paute – necessariamente – a conduta. Retomando sábios antigos, circunscreverei o Todo alicerçado-o nos quatro elementos: Fogo, Terra, Ar e Água.

Fogo porque a metafísica (metá tá physica, o que está para além da física) é responsável por toda sorte de crenças e superstições, enraizadas desde os primórdios. O indizível, o inabarcável presentifica-se do nascimento à morte, suscitando sentimentos de gratidão bem como de desespero por dádivas e bênçãos. É comum que a metafísica seja manipulada por grupos que intermedeiam a conexão com o divino, eventual e paradoxalmente, fomentando discórdia.

Terra, porque estão circunscritos e intimamente ligados à matéria, ao físico, sensorial, tangível, àquilo que chamam de “real”, daí a tal “realidade” concreta na qual se movem.

Ar, pois o que os difere dos demais viventes é a capacidade de raciocínio e linguagem, através da qual aprimoram e avançam em técnicas, legando conhecimentos.

E, Água porque são susceptíveis às emoções, reféns das variações de humores no sentido hipocrático (Hipócrates foi um ilustre curandeiro grego), culminando em gestos de comovente benevolência em termos de generosidade e – quando em desequilíbrio – responsável por inúmeros distúrbios psíquicos, de origem emocional.

Submetem-se e também imprimem de si no espaço que habitam (há regiões favoráveis e aprazíveis, bem como o contrário) e subdividiram o tempo conforme a própria physis: diâmetro, extensão e conformação do planeta (ciclos de estações anuais, de lunação e solar). Para consenso preciso e eficaz tanto do Tempo quanto do Espaço, desenvolveram e utilizam as ferramentas de ciências físicas e matemáticas.

A constituição física é frágil, o que é compensado pela engenhosidade, dom que atribuem à metafísica. Curiosos, subdividem a própria existência em fases, cujas três principais são: infância, maturidade e decrepitude. Atualmente consideram uma série de fases intermediárias (recém-nascido, bebê, criança, pré-adolescente, adolescente, adulto, maduro, idoso, etc.) e quanto mais nos extremos, maior a vulnerabilidade e probabilidade de vivenciarem violência imputada por seus algozes.

No entanto, essas subdivisões não são estáticas. Amostras do que denominam séculos a.C. (marco do nascimento de Cristo, figura das mais importantes), do século XV e do atual XXI, por exemplo, apontam que distinção de acepção e denominação dos períodos de vida sofre variações ao longo do tempo.

Devido à perecividade, o fator “Tempo” é algo que os limita e define. Julgam-no algo “valoroso”, no entanto, revelam dificuldades em lidar com ele: sentem-no como infindável no início e, à medida em que vão avançando em idade, desesperam-se pela escassez, sacando de todo tipo de subterfúgio para que o corpo não revele esse avanço. Escamoteiam letargia, flacidez, rugas, embranquecimento capilar e tudo o mais que denuncie declínio, investindo em ciências cosméticas.

O prazo de validade expira aos cerca oitenta ou noventa anos e subdividem-se entre os que são ou não dotados de órgão reprodutor externo, mas alguns são confusos quanto a isso. Em pico de ebulição hormonal, anseiam por se unirem em cópula, de onde extraem prazer e, eventualmente, geram descendentes.

Estabelecem leis e penalidades para inúmeras atividades sociais, supervisionadas por órgãos competentes. Exigem autorização ou licença do Estado para dirigir os veículos que os transportam, unirem-se em matrimônio, movimentar recursos em instituições financeiras (abrir conta em Banco), aventurar-se em negócios (abrir "firma"), realizar viagens e até mesmo para exercer a cidadania, que nos regimes democráticos caracteriza-se pelo direito de eleger seus representantes através do voto.

Curiosamente, para a atividade mais importante e irreversível da existência, que é a concepção e a responsabilidade no cuidado de seres indefesos, não há requisito prévio. Mesmo os desprovidos, os ainda em tenra idade e os inaptos (reféns de vícios e demais desequilíbrios psíquicos) procriam livremente.

Parte significativa das mazelas que os afligem reside exatamente no desprezo a essa questão, pois sabem que a prole quando bem-vinda e bem cuidada revela-se mais apta ao bom desenvolvimento tanto físico quanto psíquico.

No último século, tem sido comum casais se unirem, gerarem e desistirem da companhia um do outro enquanto a prole ainda não está apta a subsistir. Nessas ocasiões, não é raro que haja conflitos.

Aliás, conflitos são a tônica de muitas das relações que travam ao longo da existência. Desde os primórdios, são gregários e, por maior intimidade, os laços consanguíneos são fontes de salvaguarda e de dissabores.

Vaidosos, apreciam ser enaltecidos, relatam façanhas e buscam aplausos dos pares, que elegem como os “superiores” dentro de seus círculos. Todos, em maior ou menor grau, são reféns da “vanitas”. Patéticas, muitas dessas vaidades são até bem ingênuas: exibem orgulhosos o alimento que ingerem, com quem se relacionam, por onde andam e o que fazem.

Fonte de vaidade também são as características físicas, os dons e talentos. Enaltecem a harmonia das proporções físicas (peso x altura) e, por haver variação nas cores de pele, cabelos e olhos, auto avaliam-se e medem-se uns aos outros, recorrendo a métodos que propiciem atrativos que os destaquem, tornando-os alvo de inveja do grupo.

Tal qual os dedos de suas mãos, não são iguais, mas parecidos. Após cerca de dezesseis horas em atividades que assegurem a subsistência, a manutenção do status alcançado ou ainda empenhando-se em atingir o almejado, o organismo exige repouso. Alimentam-se cerca de três vezes ao dia, são dotados de mecanismos excretores eficazes e não sobrevivem sem ar e água.

Seus instintos – quando não domesticados – os levam a atos de barbárie contra os indefesos, sobretudo crianças e, mesmo cônscios do quão irreversíveis são tais perversidades, negligenciam a interditos como incesto e pedofilia, que perpassam sorrateiramente por séculos de existência. Alvos de injustiça e violência são também os desprovidos de acesso à educação, de recursos econômicos e os idosos.

Através de mecanismos de fala e escrita, compartilham descobertas notáveis e incessantes, assegurando-se de progressos em saúde, segurança, comodidade e conforto, itens que pautam a estratificação social, pois subdividem-se em classes que denominam: baixa, média e alta.

Como em tudo, há subdivisões. Quanto menor a capacidade de acesso aos bens, mais baixo o nível econômico e menor a garantia de uma existência digna, enquanto que, quanto mais elevado o estrato social, maior o desfrute de privilégios, cujo anseio é constante e insaciável.

Soberbos, são atraídos pela demonstração de poder, com o qual, além de assegurar luxos e exclusividades, exercem comando sobre os demais. O poder, sobretudo político (zelar pela pólis, pela res pública) é pervertido em seu propósito e manipulado a fim de angariar fama, honras e principalmente fortunas, pois no afã de amealhar tesouros sobre a Terra. 

Ferrenhos e costumeiros transgressores de Leis, impiedosamente, enganam, mentem, desrespeitam, roubam, ludibriam, extorquem e até matam.

Xenófobos, são condescendentes com aqueles que consideram como sendo “os seus”. E de muita má vontade para com os que não compactuam com costumes, crenças ideias e ideais.

Talvez, “de fora”, percebamos melhor quem somos.
Luciene Felix Lamy

Chocada com as manifestações das pessoas sobre o vídeo abaixo, decidi postá-lo.

UM DESESPERADO GRITO POR SOCORRO QUE NINGUÉM ESCUTA!


É provável que essa criança esteja sendo vítima de algum tipo de perversidade (espancamento ou até mesmo abuso) dentro de sua própria casa (supondo que viva num lar). E que, por não conseguir verbalizar a violência da qual é vítima, esteja exteriorizando sua revolta aos maus tratos à qual é submetido agindo também de forma desequilibrada.

Talvez esse seu comportamento seja reflexo do que vivencia com os quais convive e alguém precisa ouvi-la, a fins de perscrutar o(s) porquê(s) de tal atitude. Infelizmente, nenhuma das pessoas por perto detém sensibilidade para aventar a essa possibilidade, pois são despreparadas para lidar com a manifestação de revolta quando ela eclode justamente na fase mais tenra, frágil e presumivelmente "doce" da vida, que é a infância. 

É lamentável e até revoltante que não se atente a isso. A turba (multidão ) apressa-se a opinar à partir de suas experiências pessoais, negando-se à dádiva de PENSAR para além de seu próprio umbigo. Óbvio que nem todas as crianças, vítimas de violência, se manifestam dessa forma, mas devemos atentar à regra, não somente às exceções.


Um amigo disse desconfiar: "(...) pra mim isso eh um caso de psicopatia." Bem, SE for esse o caso, mais uma razão para que profissionais especializados investiguem e confirmem a patologia. 

Só me manifestei (tanto no facebook quanto aqui mesmo, em nosso blog) porque li comentários absurdos e rasos, extremamente mal embasados sobre a questão. Há realmente a possibilidade da criança já ter uma predisposição psíquica a reagir com violência quando contrariado, sem dúvida, MAS, no entanto, contudo, todavia, SE o meio fizer ouvidos moucos a esses indícios e manifestações, as consequências, tanto para a sociedade quanto para ele próprio poderão vir a ser muito, mas muitos mais nefastas.

Abraços,

Luciene Felix Lamy
E-mail: mitologia@esdc.com.br

1 de out. de 2015

Da Amizade - Michel de Montaigne - Parte II

Na amizade cintila um pouco do mistério de Deus”. Platão

No artigo anterior (AQUI), versando sobre o Ensaio “Da Amizade”, de Michel de Montaigne (1533-1592), ficamos de ponderar sobre como se assentam as questões relativas aos bens e ao dinheiro entre os verdadeiros amigos.

Trata-se de uma questão melindrosa, pois muitos ainda consideram, sexo, dinheiro e morte, temas tabus. De fato, não há dúvida de que – tanto a eventual necessidade, quanto a permanente fragilidade pecuniária – podem ser ainda mais constrangedoras que a própria nudez. Envergonhados, nos negamos a evidenciar fragilidades desse tipo e, por considerá-las verdadeiramente vexatórias, as ocultamos.

Sabemos que um dos pontos nevrálgicos em toda e qualquer relação mais íntima (às vezes, até mesmo entre casais) diz respeito aos bens e às questões financeiras. Portanto, se considerarmos como sendo verdadeira a afirmação (atribuída a Delfim Neto) de que “a parte mais sensível do corpo humano é o bolso” e a associarmos ao jargão popular que “amigo é como parafuso, só se conhece na hora do aperto”, como ficam as delicadas e embaraçosas questões econômicas entre os verdadeiros amigos?

Referimo-nos aos amigos sinceros, pois o humanista, filósofo, jurista e escritor francês, aponta que sim, claro que encontramos facilmente pessoas aptas a travar relações superficiais conosco. Mas isso não se verifica quando procuramos uma intimidade sem reservas. E intimidade, estamos cônscios, não se força.


Montaigne nos esclarece que amizades sinceras atingem um tal grau de perfeição que amigos assim nem perdem tempo pensando que devem algo um ao outro, ou seja, não se fica medindo o que se faz ou o quanto custou fazer algo por quem prezamos tanto.

E que, entre amigos leais, devido ao fato disso já estar tão bem assentado e incutido em seus corações (tal qual ocorre entre os cônjuges) são dispensáveis as palavras que estabelecem divisões ou evidenciam diferença, tais como: favor, obrigação, reconhecimento, pedido, agradecimento e outras.

Na verdade, quando um verdadeiro amigo pode beneficiar ao outro, o benfeitor, ou seja, aquele que pôde ajudar é o legítimo favorecido. Isso porque entre verdadeiros amigos, ambos colocam acima de tudo a felicidade de agradar um ao outro e aquele amigo que precisou está nos dando a chance de fazer algo genuinamente prazeroso: “quem dá a seu amigo a oportunidade de fazê-lo é quem se mostra mais generoso, pois lhe outorga a satisfação de realizar o que mais lhe apraz”. Realmente, ajudar a um amigo é algo que enche nosso coração de alegria.


Sobre a deferência, a consideração que nos é concedida pelo amigo que nos procura, Montaigne relembra que quando o filósofo grego Diógenes precisava de dinheiro, afirma o autor, dizia que ia “reclamá-lo dos amigos”, e não que lhes ia pedir.

E a fim de exemplificar com um fato esse estado de alma, narra um episódio de Eudâmidas que, pobre, tinha dois amigos ricos: Charixênio de Licíon e Areteu de Corinto.

Conta-nos o francês que, às vésperas de morrer, Eudâmidas redigiu seu testamento assim: “Lego a Areteu o cuidado de tomar conta de minha mãe e suprir-lhe as necessidades durante a velhice; a Charixênio a obrigação de desposar minha filha e constituir-lhe um dote tão elevado quanto possível”. E reiterou que caso um deles viesse a morrer, o que estivesse vivo ficaria incumbido de ambas as missões.

Ele nos relata que os primeiros que viram o testamento de Eudâmidas caçoaram dele, mas os seus herdeiros o aceitaram com uma alegria espantosa. Infelizmente, seu amigo Charixênio faleceu cinco dias depois e Areteu, que substituiu-o na parte que lhe cabia, tratou cuidadosamente do sustento da mãe de Eudâmidas; e, elevando-se seu patrimônio a cinco talentos, deu dois e meio à sua própria filha, que era filha única, e dois e meio de dote à filha de seu amigo, conforme manifestara ser de sua vontade. Ambas as moças se casaram no mesmo dia.

Poder ajudar a um amigo necessitado, mais que uma dádiva, é uma honra que nos concede aquele amigo que se encontra em apuros. Isso demonstra que nos tem em elevadíssima conta, pois questões particulares assim, confiamos somente aos íntimos.

Segundo o autor, é por isso que os legisladores, com o fito de emprestar ao casamento uma vaga semelhança com essa ligação tão sublime e de essência divina, que existe entre verdadeiros amigos, proíbem as doações entre marido e mulher, tentando assim nos levar a entender que o que é de cada um deve ser de ambos e que nada do que lhes pertence se pode dividir ou atribuir pessoalmente a um dos cônjuges.

O que verdadeiros amigos colocam acima de tudo é a felicidade um do outro, por isso ficam tão felizes em obsequiar, em fazer favores, agradar um ao outro. Sendo assim, à frase popularizada pelo economista americano Milton Friedman (1912-2006) de que “não existe almoço grátis” poderíamos conciliar: Mas existe sim, almoço bancado de bom grado e com alegria pelo verdadeiro amigo.

Sobre bens e finanças, assentado que entre amigos, tudo é comum, Montaigne prossegue salientando que amigo mesmo, de verdade, só se tem um! Ele esclarece que nas amizades triviais, ordinárias, corriqueiras, podemos nos dividir entre os inúmeros e diversos amigos e suas inúmeras e diversas virtudes, talentos, generosidade, bom gênio, enfim, apreciamos certos predicados nuns, outros dons em outros: “Num a liberalidade, noutro o modo por que se conduz como pai, e em outro ainda sua afeição fraternal, etc.”.

Mas insiste que essa amizade que nos preenche a alma e a domina não pode subdividir-se, ou seja, aprecia-se a totalidade, pois para ele não é possível “multiplicar e transformar em confraria essa coisa única e homogênea tão difícil de encontrar no mundo”.

Caso você seja um desses agraciados com a dádiva de sentir que pode contar com a benção de uma verdadeira amizade, – felizardo(a)! – cultive-a.

Cultive-a (“Amizade nutre-se de comunicação”, reiterou Montaigne) com zelo de quem dedica a uma flor rara, todo cuidado do mundo, pois dentre os mistérios da vida, está a amizade, que – magia! – diminui as angústias, divide as tristezas e multiplica as alegrias: quem tem um amigo, encontrou um tesouro!

Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana da
Galleria Borghese, Roma

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1 de set. de 2015

Da Amizade - Michel de Montaigne - Parte I


Amizade nutre-se de comunicação.” Montaigne

O humanista, filósofo, jurista e escritor francês Michel de Montaigne (1533/1592) foi pioneiro no gênero literário que denominamos “ensaio”. Ensaios, do francês “essais”, designa textos sobre algum tema que se desenvolve de forma mais livre e descompromissada, sem que seja necessário um método rigoroso do ponto de vista acadêmico, ou reivindique alguma conclusão final.



Dos “Ensaios” de Montaigne, trazemos uma reflexão sobre o capítulo intitulado “Da amizade”, onde, abalado pela perda de seu querido amigo Étienne de La Boétie (1530-1563), o autor discorre sobre esse tema tão precioso, pois como afirma seu compatriota François de La Rochefoucauld, “A amizade, depois da sabedoria, é a mais bela dádiva feita aos homens”.

De início, a fim de evitar frustrações em relação às expectativas, convém esclarecer que aquele famoso “amigo de fé, irmão, camarada”, enfim, amigo mesmo, de verdade, é algo raríssimo.

Embora consideremos ter “muitos amigos”, assim como nem todos são abençoados em – por exemplo –, nascer no seio de uma família amorosa e responsável, de ser agraciado com um matrimônio feliz ou de ter seus esforços profissionais devidamente reconhecidos e também recompensados, vivenciar a amizade verdadeira é uma dádiva.

Montaigne esclarece que o Ensaio redigido por La Boétie (Discurso da Servidão Voluntária, já tratado AQUI) foi o ponto de partida desta amizade durou o quanto Deus permitiu. Ressalta que são muitas as circunstâncias necessárias para que esse sentimento se edifique.

Afirma que a amizade assinala o ponto mais alto de perfeição na sociedade e que a natureza parece muito particularmente interessada em implantar em nós a necessidade dessas relações. Chama a atenção para o fato de que em geral, sentimentos ao qual damos o nome de amizade, quando nascidos da satisfação de nossos prazeres, das vantagens que usufruímos, ou de associações formadas em vista de interesses, são menos belos, menos generosos, pois essas tem outras causas, visa outros fins.



De fato, afeições ditadas pela natureza, pela sociedade, pela hospitalidade ou ainda ditadas pelas exigências dos sentidos, não atingem o ideal que implica numa verdadeira amizade.

Esse tipo tão distinto e peculiar de amizade à qual Montaigne se refere não há como existir nas relações entre pais e filhos porque entre esses é mais o sentimento de respeito que domina.

Amizade nutre-se de comunicação, insiste, e, convenhamos, não há como estabelecer-se comunicação nesse domínio (de vínculo filial) em virtude da grande diferença que existe, sob todos os pontos de vista: “e esse intercâmbio de ideias e emoções poderia por vezes chocar os deveres recíprocos que a natureza lhes impôs, pois, se todos os pensamentos íntimos dos pais se comunicassem aos filhos, ocorreriam entre eles familiaridades inconvenientes”.



Até porque, diz o filósofo, uma das primeiras obrigações da amizade é dar conselhos, formular censuras, o que temos que concordar que seria inapropriado dentro de tal relação.

Embora tanto ele quanto La Boétie tenham empregado o nome de “irmão” um ao outro, por considerar esse nome belo e digno da maior afeição, Montaigne salienta que entre irmãos de verdade, a comunidade de interesses, a partilha de bens, a (eventual) pobreza de um como consequência da riqueza do outro, destemperam consideravelmente essa união formal.

Diz-nos que é a correspondência dos gostos que engendra essas verdadeiras e perfeitas amizades e, naquelas que nos impõe a lei e as obrigações naturais (no ambiente estudantil, de trabalho ou nos encontros sociais e de lazer familiar, por exemplo), nossa vontade não se exerce livremente, elas não resultam de uma escolha e nada depende mais de nosso livre arbítrio que a amizade e a afeição.

Quanto à possibilidade de amizade com uma mulher, ressalta que essa afeição, embora seja proveniente de nossa escolha, não poderia comparar-se à amizade nem substituí-la: “pois somos também conhecidos da deusa que mistura um doce amargor às suas preocupações: ela é mais ativa, mais aguda, mais áspera; é uma chama temerária e volúvel, agitada e versátil; chama febril, sujeita a intermitências de temperatura e que só nos prende por uma parte de nós”, concluindo que o amor é, antes de mais nada, um desejo violento do que nos escapa.

O calor da amizade, diz, estende-se a todo o nosso ser, é geral e igual, temperada e serena, soberanamente suave e delicada, nada tendo de áspero nem de excessivo, cresce com o desejo que da amizade temos.

Pondera que a verdadeira amizade eleva-se, desenvolve-se e se amplia na frequentação, é de essência espiritual e a sua prática apura a alma. Distinguindo as inúmeras afeições passageiras, da verdadeira amizade, Montaigne nos enleva ao afirmar que essa última é cheia de nobreza, que mantém-se sempre nas regiões elevadas.

Ainda quanto à possibilidade de amizade entre um homem e uma mulher, ele pondera que, SE se pudesse formar com uma mulher, livre e voluntariamente, semelhante ligação, em que não apenas a alma provasse plena satisfação mas também o corpo encontrasse seu prazer, em que cada qual assim se entregasse por inteiro, a amizade seria mais perfeita e total; mas todas as escolas filosóficas da antiguidade concluíram ser isso impossível.

Montaigne condena a “philía” que chama de delírio inspirado pelo filho de Vênus (Eros), esse gênero de licenciosidade contra a natureza que era permitida entre os gregos, mas que nossos costumes reprovam com razão, pois não é pelo espírito que o adolescente, objeto dessa paixão, podia inspirá-lo –, pois ainda era jovem demais e em vias de desenvolvimento –, mas pelos atrativos do corpo.



Citando Cícero, ele diz que: “A amizade atinge sua irradiação total na maturidade da idade e do espírito”. A isso que chamamos comumente de amigo e de amizade não passam de ligações travadas ao sabor das oportunidades e dos interesses e por meio das quais nossas almas se entretêm. Pessoalmente, embora menos intensas, também as considero de natureza salutar.

Mas, referindo ao tipo de amizade que alicerçou com La Boétie, esclarece que nesse tipo, as almas se entrosam e se confundem em uma única alma. Em ligações dessa natureza, diz ele, intervém uma força inexplicável e fatal que não saberia definir: “Nós nos procurávamos antes de nos termos visto, pelo que ouvíamos um acerca do outro, e nascia em nós uma afeição fora de proporções (…), no que vejo como que um decreto da Providência”.



Para o filósofo, também não se põem em dúvida as intenções do verdadeiro amigo e que nenhuma das suas ações poderia nos ser apresentada sem que, de imediato, percebêssemos o motivo: “Nossas almas caminharam tão completamente unidas, tomadas uma por essa afeição que penetra e lê no fundo de nós mesmos, que não somente eu conhecia a sua [alma] como a minha, mas teria, nas questões de meu interesse pessoal, mais confiança nele do que em mim mesmo”.



Nas amizades comuns, alerta Montaigne, é necessário segurar as rédeas e caminhar com prudência; o nó da união não é de tal solidez que se deva confiar dele. Já entre amigos de verdade, os serviços e favores – elementos essenciais às outras amizades – não entram em conta, porque as vontades dos verdadeiros amigos são fundidas numa só.

Prossigamos com Michel de Montaigne, pois ainda precisamos ponderar, entre outras particularidades, sobre as questões relativas aos bens e ao dinheiro entre os verdadeiros amigos.

Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana da
Galleria Borghese, Roma

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1 de ago. de 2015

A vontade em Thomas Hobbes


Respeitar tratados e convênios não é questão de direito, é questão de conveniência.” Thomas Hobbes.

Sabemos que nossas ações (decisões, atitudes) são precedidas de uma espécie de sensação que denominamos “vontade”, que ela nos move, pois sem a mínima vontade não há empenho sequer para deixar os lençóis pela manhã, que dirá empreender tarefas mais árduas, mesmo que urgentes.

O matemático, teórico político e filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), em sua obra Liberdade e necessidade ponderou sobre o que estaria por trás da vontade, que é último elo na cadeia de deliberação (reflexão) a condicionar nossas ações diante das opções que enxergamos. Ah, a vontade, o querer ou não querer... Queres refletir?

Diante de um impasse, de uma questão que exija que reflitamos e que ponderemos sobre as opções existentes estaremos também, por um momento que seja, num estado de indeterminação em relação ao fim de nossas escolhas, ou seja, os resultados, as consequências de nossos atos ainda não estarão dadas ao nosso entendimento.

Nesse estado de indeterminação, de certa “liberdade” que Hobbes denomina de “estado cinético” ainda não prevalece a expressão que o inglês chama de “conatus”, que é uma sensação constituída como vontade. Conatus então é a palavra que o estudioso usa para designar a prevalência, a supremacia de uma sensação sobre as demais.

Antes de agirmos, ponderamos e, em relação a um objeto (ou situação), percebemos que uma determinada sensação – conatus – prevalece sobre as demais, findando o processo de deliberação e decorrendo daí, a ação escolhida. Essa escolha é livre? O que determina ou induz nossas predileções, o que suscita nossa VONTADE?

Hobbes diz que mesmo nas ocasiões em que agimos por medo de alguma represália, num determinado sentido, somos livres sim, porque sempre podemos contar com a opção de agir de outro modo: “Assim também, às vezes, só se pagam as dívidas com medo de ser preso, o que, como ninguém impede a abstenção do ato, constitui o ato de uma pessoa em liberdade”. De fato, embora convenha liquidar os débitos que contraímos, somos livres para não fazê-lo.

No entanto, segundo Hobbes, uma ação é considerada livre na medida em que o seu transcurso não é obstaculizado. Entretanto, salienta que a ação é determinada por uma causa imediata, a vontade, isto é, por uma sensação que preponderou sobre as demais (conatus) no processo deliberativo. Sendo que a deliberação é concebida como uma cadeia de sentimentos antagônicos – desejos e aversões – causadas por um objeto do querer.

As sensações (medo, desejo, aversão, etc.) suscitadas pelos objetos que nos cercam são como imagens reproduzidas na faculdade da sensação pela memória que temos de nossas experiências com eles: “Pois se um homem está deliberando sobre qual melhor estratégia, ou conjunto de ações, para obter a vitória em um combate [por exemplo], está necessariamente ponderando sobre elementos relativos à sua experiência passada em combates”. E esses elementos serão acompanhados de desejo ou aversão conforme o que tiver sido preservado na memória sobre determinado objeto ou situação.

Suponhamos que, ao rememorar fatos e ações passadas que nos trouxeram algum sofrimento ou fracasso, surja determinada imagem acompanhada por sentimentos ou sensações de medo e temor. Nesse caso, a aversão imperará.

No caso da suposição acima descrita, podemos constatar que a liberdade não significa autonomia da vontade frente às relações causais, pois a sensação de medo (ao culminar em aversão), determinará o sentimento da vontade: aversão.

O que quer que tenhamos vivenciado no passado (tanto nosso, privado – enquanto indivíduos –, ou seja seres únicos, indivisíveis, quanto – enquanto membros de uma sociedade) comporá aquilo que chamamos de experiência. Aqui vislumbramos o entrelaçamento entre nossas ações (fruto de nossa vontade) atrelada às nossas experiências.

O filósofo nos explica que “A sensação que conformará a vontade ao término da deliberação tem necessariamente sua causa em fato ou fatos repetidamente vivenciados e resguardados, como uma corrente de sensações na memória, o que compõe a sua experiência”. O que significa que deliberamos (refletimos) no presente ponderando sobre fatos e sensações passados preservados em nossa memória.

É que somente à partir da experiência é que os objetos (ou situações) são assinalados com as qualidades de sentimentos e sensações que serão como marcas em nossa psique. Isso porque os sentimentos ou sensações produzirão efeitos sobre nosso aparato sensível (Homero, o maior poeta grego diria, nos phrenas).

Graças a esse aparato sensível, esquivamo-nos de situações que insinuem desarmonia, denotem belicosidade ou promovam algum risco ao nosso conforto, à nossa segurança e tranquilidade, sem falar de tudo o que ameace a preservação da própria vida.

Segundo Hobbes, agimos sempre orientados pelo impulso primordial que é o de preservação da vida: “Assim sendo, a causa imediata da ação – a vontade – sofre uma determinação interna e natural”. Trata-se do conatus ao qual nos referimos acima, da supremacia de uma sensação.

Entretanto, ele ressalta que se realizarmos o percurso contrário e, partindo dos efeitos (as ações), ascendermos em direção às causas de nossas ações, passando pela causa imediata (a vontade) e chegarmos às causas que produziram as sensações que compõem o expediente de deliberação, obteremos uma cadeia de causas e efeitos que acabará por se inscrever em outra cadeia causal maior, que conforma o mundo. Nossa vontade é livre sim, porém, circunscrita num todo maior.

Quanto ao estatuto da natureza da ação humana, Hobbes insiste que quando um homem manifesta desejo por alguma coisa pela qual não tinha antes desejo e vontade, a causa dessa vontade não é a mera vontade em si mesma, mas alguma outra coisa (ou causa) anterior, que atuou sobre ele e da qual ele não tem consciência imediata.

Sendo assim, a tese que Hobbes defende é a de que a ação humana não é livre, no sentido de ser derivada de uma vontade absolutamente incondicionada, porque nossas ações são condicionadas pela ordem causal (sucessões de causas/efeitos) dados pela natureza e seus imperativos, a saber, o medo maior, que é o de morrer.

O medo da morte é tão evidente que geres, a decrépita velhice (indício líquido e certo da proximidade de finitude) suscita a vontade pelo combate. Não surpreende que um dos maiores investimentos humanos seja – cada vez mais – na promoção da saúde e da juventude.

Ao romper com a relação de causalidade, romperíamos com a geração e, onde não há geração, diz ele, não há, correlativamente, a possibilidade de conhecimento filosófico.

Concluindo, somos livres para agirmos conforme nossa vontade, claro. Mas ela, a vontade, não está desvinculada dos sentimentos e sensações suscitados pela memória que temos de nossas experiências passadas, registradas em nosso (Freud será leitor de Hobbes) inconsciente.

Cada um de nós mantém, no interior de nossa vida em sociedade, a liberdade de decidir sobre os desígnios de nossas ações. Somos livres, inclusive, para optar pela recusa em obedecer e seguir as normas já conformadas em nosso meio social. A fundação do Estado subjaz justamente nessa liberdade (no risco constante de desobediência), zelando para que (pelo seu poder) a incompatibilidade entre o que queremos e o que nos é permitido querer seja minimizado.

É esse acordo entre as vontades dos agentes – nós, enquanto indivíduos, repletos das mais diversas (lícitas e ilícitas) vontades – e a sociedade (na pessoa do Estado) que permite que realizemos nossas atividades, desfrutemos de conforto e tranquilidade. Com toda liberdade possível, é claro.

Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana

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1 de jul. de 2015

REFUGIADOS IMIGRANTES: Hobbes e o Estado - Parte II


(...) os homens, tendo em vista conseguir a paz, e através disso sua própria conservação, criaram um homem artificial, ao qual chamamos Estado, assim também criaram cadeias artificiais, chamadas leis civis (...)”. Thomas Hobbes.


No artigo anterior (AQUI), Freud deixa claro o quanto somos bélicos, violentos, hostis. E esclarece também que as penalidades previstas nas leis visam inibir os excessos mais grosseiros de nossas brutalidades, ressaltando, entretanto, que “a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana”. As denúncias de assédio moral, por exemplo, evidenciam a sutileza de tais perversidades.

Realista, o pai da psicanálise conclui que “Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar – como sendo ilusões –, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles.”

É com a constatação dessa desumanidade que a civilização funda e tenta lidar com o Estado, essa espécie de mega “pessoa jurídica artificial”. O Estado, que é conduzido por “autoridades” (no caso das democracias) legitimadas por seus “súditos” (através dos que elegemos para nos representar) e instituído.

E assim “O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança”, como diz Freud, leitor do matemático e filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679).

Mas o que é o Estado? O que o sustém e, convém ou não – sim, ao Estado também! - responder e ser penalizado por suas ações arbitrárias?

Para pensar esse pacto social entre o Estado e as pessoas governadas por seus ditames – tão negligenciadas como denuncia o exorbitante número de imigrantes e refugiados no mundo atual –, trazemos algumas ideias de Hobbes, pois aviltados em sua dignidade, os imigrantes regressam ao estado de natureza e, como cada um é seu próprio juiz, se veem obrigados a agir conforme o que julgam ser a melhor saída (literalmente) a fim de preservar suas vidas. Nada mais natural e compreensível.




O estado de guerra, que segundo Hobbes não se caracteriza – necessariamente – por um conflito empiricamente dado, mas onde basta haver uma situação de hostilidade potencial, nos autoriza ao que for possível para nos mantermos vivos.

Óbvio que todos nós, enquanto racionais, concordamos que – terrível – a iminência de guerra é o quadro mais temido, pois acena com a morte violenta de milhões inocentes. É por isso que nossa razão calcula que devemos nos empenhar ao máximo para evitar tamanha irracionalidade. Eis o télos (do grego propósito, finalidade) do Estado.

Artifício social, o Estado político é uma espécie de artefato, uma “pessoa civil”, uma ficção, um construto, em virtude do qual abandonamos nossos interesses enquanto indivíduos a favor de um todo maior, do grupo ao qual pertencemos. 

E não podemos furtamo-nos a exigir desse grupo maior do qual fazemos parte a primazia pela harmonia, o sublime, repudiando o bestial em seus atos/éthos.

Até porque, “A existência do Estado revela a dependência da relação com os membros que o compõem e sua finalidade última está justamente na preservação da vida de cada um de seus membros (...)”. 

A intencionalidade comum aos seres humanos é sempre a preservação da vida, o bem estar e a paz. Instituir e promover medo e terror, obrigando seus membros às fugas desesperadoras é contrariar exatamente o cerne de sua criação e razão da existência do Estado.

Considerando que deliberamos (pensamos, raciocinamos, ponderamos) sobre nossas ações futuras (ainda inexistentes), sobre aquelas decisões e atitudes que ainda estão abertos aos caprichos do nosso livre arbítrio, ou seja, projetados para um vir-a-ser, a existência de uma instância superior, “soberana” (no caso, o Estado político) é caudatária (carrega, ampara, segue, é ancoradouro) das intenções e das ações humanas.

Como resume bem o estudioso Júlio Bernardes: “O Estado político, desde sua gênese, está lógica e ontologicamente condicionado pela existência dos seres humanos, quer no momento específico de sua confecção – o contrato – quer pela finalidade que determina o sentido de suas ações (…)”.

A existência do Estado, salienta, depende do esforço que este realiza para a distribuição de força ou poder para as partes que o constituem, distribuição essa que se dá na forma de benesses (benfeitorias) que incrementam as condições pelas quais cada ser humano pode manter uma vida relativamente segura e confortável.

As ações do Estado (Governo) passam a representar de forma absoluta a vontade dos autores da representação (o povo) e a transferência de direito, por meio da autorização, cria simultaneamente o objeto, isto é, o Estado.

Promover condições para uma vida confortável e livre das ameças de violências e guerras depende, necessariamente, das decisões do Estado.

Sendo assim, como aponta Júlio Bernardes, a paz efetivada pela soberania é condição necessária para o bem comum. Entretanto, o desenvolvimento das condições que podem implementá-la é obtido pela ação livre dos indivíduos, que tendem naturalmente para isso no interior da sociedade civil organizada.

Para Hobbes, fundamental é que o Estado seja concebido como uma pessoa que delibera e que o resultado dessa deliberação seja por todos acatado. Nas repúblicas democráticas esse processo de deliberação pode ser bem complexo e moroso, pois transcorre por várias instâncias.



No entanto, uma vez deliberado, o Estado passa a constituir sua vontade, reflexo dos anseios de seus membros: “O Estado regra as ações que atentam ou são contrárias ao bem comum”, afirma Hobbes.

Artifício humano, esse Estado hobbesiano é o que possibilita o desenvolvimento das artes, da ciência, do trabalho e do comércio, enfim, de tudo aquilo que repousa sobre a iniciativa e o exercício das faculdades naturais de cada homem, afirma Bernardes.

Não obstante, estas atividades desenvolvidas no interior da sociedade civil repousam na liberdade privada dos indivíduos, que tendem por natureza para o prazer e o conforto, isto é, para a boa vida.

A guerra revela características primitivas e instintivas (“humano, demasiado humano”), é a situação onde não há lugar para os resultados do engenho humano, pois atacando ou se defendendo “o homem não humaniza o mundo”.

Thomas Hobbes diz que na guerra não há “lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso de mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos (...); não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade...”.

Diante de tamanha barbárie urge atentarmos ao fato de que numa sociedade globalizada como a atual, quando o Estado atenta contra seus integrantes e os induz à desesperadora condição de refúgio, atenta também contra cada um de nós, enquanto seres humanos, todos nós acabamos por nos tornar vítimas das ações de tiranos.

Os homens obedecem as leis por medo da punição. “É por si só manifesto que as ações dos homens procedem de sua vontade, e essa vontade procede da esperança e do medo (…) devemos providenciar nossa segurança, não mediante pactos, mas através de castigos (…).” Quando um Estado se revela perverso, barbarizando, urge impor as penas correspondentes.

Como apelo, vale suscitar a compaixão nas sábias palavras do filósofo e economista Adam Smith (1723-1790): "Independente de quão egoísta possa ser o homem, há evidentemente um princípio natural que o faz interessar-se pela sorte dos outros e considerar sua felicidade necessária para si, mesmo que nada obtenha dela além do prazer de vê-la". Cuidar dos seres humanos é zelar por nós mesmos.



Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana da
Galleria Borghese, Roma
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Eis que a Sabedoria reina, mas não governa, por isso, quem pensa (no todo) precisa voltar para a caverna, alertar aos amigos. Nós vamos achar que estais louco, mas sabes que cegos estamos nós, prisioneiros acorrentados à escuridão da caverna.

Abordo "O mito da caverna", de Platão - Livro VII da República.

Eis o télos (do grego: propósito, objetivo) da Filosofia e do filósofo. Agir na cidade. Ação política. Phrônesis na Pólis.

Curso de Mitologia Grega

Curso de Mitologia Grega
As exposições mitológicas explicitam arquétipos (do grego, arché + typein = princípio que serve de modelo) atemporais e universais.

Desse modo, ao antropomorficizarem os deuses, ou seja, dar-lhes características genuinamente humanas, os antigos revelaram os princípios (arché) de sentimentos e conflitos que são inerentes a todo e qualquer mortal.

A necessidade da ordem (kósmos), da harmonia, da temperança (sophrosyne) em contraponto ao caos, à desmedida (hýbris) ou, numa linguagem nietzschiana, o apolíneo versus o dionisíaco, constitui a base de toda antiga pedagogia (Paidéia) tão cara à aristocracia grega (arístois, os melhores, os bem-nascidos posto que "educados").

Com os exponenciais poetas (aedos) Homero (Ilíada e Odisséia), Hesíodo (A Teogonia e O trabalho e os dias), além dos pioneiros tragediógrafos Sófocles e Ésquilo, dispomos de relatos que versam sobre a justiça, o amor, o trabalho, a vaidade, o ódio e a vingança, por exemplo.

O simples fato de conhecermos e atentarmos para as potências (dýnamis) envolvidas na fomentação desses sentimentos, torna-nos mais aptos a deliberar e poder tomar a decisão mais sensata (virtude da prudencia aristotélica) a fim de conduzir nossas vidas, tanto em nossos relacionamentos pessoais como indivíduos, quanto profissionais e sociais, coletivos.

AGIMOS COM MUITO MAIS PRUDÊNCIA E SABEDORIA.

E era justamente isso que os sábios buscavam ensinar, a harmonia para que os seres humanos pudessem se orientar em suas escolhas no mundo, visando atingir a ordem presente nos ideais platônicos de Beleza, Bondade e Justiça.

Estou certa de que a disseminação de conhecimentos tão construtivos contribuirá para a felicidade (eudaimonia) dos amigos, leitores e ouvintes.

Não há dúvida quanto a responsabilidade do Estado, das empresas, de seus dirigentes, bem como da mídia e de cada um de nós, no papel educativo de nosso semelhante.

Ao investir em educação, aprimoramos nossa cultura, contribuimos significativamente para que nossa sociedade se torne mais justa, bondosa e bela. Numa palavra: MAIS HUMANA.

Bem-vindos ao Olimpo amigos!

Escolha: Senhor ou Escravo das Vontades.

A Justiça na Grécia Antiga

A Justiça na Grécia Antiga

Transição do matriarcado para o patriarcado

A Justiça nos primórdios do pensamento ocidental - Grécia Antiga (Arcaica, Clássica e Helenística).

Nessa imagem de Bouguereau, Orestes (Membro da amaldiçoada Família dos Atridas: Tântalo, Pélops, Agamêmnon, Menelau, Clitemnestra, Ifigênia, Helena etc) é perseguido pelas Erínias: Vingança que nasce do sangue dos órgãos genitais de Ouranós (Céu) ceifado por Chronos (o Tempo) a pedido de Gaia (a Terra).

O crime de matricídio será julgado no Areópago de Ares, presidido pela deusa da Sabedoria e Justiça, Palas Athena. Saiba mais sobre o famoso "voto de Minerva": Transição do Matriarcado para o Patriarcado. Acesse clicando AQUI.

Versa sobre as origens de Thêmis (A Justiça Divina), Diké (A Justiça dos Homens), Zeus (Ordenador do Cosmos), Métis (Deusa da presciência), Palas Athena (Deusa da Sabedoria e Justiça), Niké (Vitória), Erínias (Vingança), Éris (Discórdia) e outras divindades ligadas a JUSTIÇA.

A ARETÉ (excelência) do Homem

se completa como Zoologikon e Zoopolitikon: desenvolver pensamento e capacidade de viver em conjunto. (Aristóteles)

Busque sempre a excelência!

Busque sempre a excelência!

TER, vale + que o SER, humano?

As coisas não possuem valor em si; somos nós que, através do nôus, valoramos.

Nôus: poder de intelecção que está na Alma, segundo Platão, após a diânóia, é a instância que se instaura da deliberação e, conforme valores, escolhe. É o reduto da liberdade humana onde um outro "logistikón" se manifesta. O Amor, Eros, esse "daimon mediatore", entre o Divino (Imortal) e o Humano (Mortal) pode e faz a diferença.

Ser "sem nôus", ser "sem amor" (bom daimon) é ser "sem noção".

A Sábia Mestre: Rachel Gazolla

A Sábia Mestre: Rachel Gazolla

O Sábio Mestre: Antonio Medina Rodrigues (1940-2013)

O Sábio Mestre: Antonio Medina Rodrigues (1940-2013)

Você se sentiu ofendido...

irritado (em seu "phrenas", como diria Homero) ou chocado com alguma imagem desse Blog? Me escreva para que eu possa substituí-la. e-mail: mitologia@esdc.com.br