“O
pior tipo de estranho é aquele que um dia você tanto conheceu”.
Estamos
na Idade Média (séc. XII), a Igreja exerce forte influência sobre
tudo e sobre todos. Dinheiro, prestígio, poder, quem quer que
detivesse ou almejasse isso estava - de alguma forma - ligado a ela.
Sendo
assim, a produção das obras de arte passam por seu crivo. A arte da
antiguidade clássica era considerada profana, a nudez, os temas
pagãos (mitologias e alegorias) estavam proibidos e os artistas
medievais, patrocinados por ela, empenhavam-se a fim de promover os
ensinamentos cristãos.
Havia
um caráter funcional na arte, pois a maioria da população era
analfabeta e, até mesmo na elite, somente uma pequena parte era
letrada. E foi com a intenção de instruir o povo sobre as histórias
bíblicas, para que pudessem contemplar e conhecer as criações de
Deus, incorporando os valores de seus ensinamentos, que foram criados
mosaicos, afrescos, pinturas e esculturas decorativas das capelas,
igrejas e catedrais.
É
desse bojo que desponta o prenúncio do período áureo que, no
estudo da Arte, denominamos “Renascimento”. Embora existam
diversas formas de estudá-lo, a maioria adota a divisão do
movimento renascentista em três partes: o Trecento (séc. XIV),
transição da arte bizantina para a renascença que floresce pelas
pioneiras mãos de Giotto di Bondone; o Quatrocento (séc. XV), fase
áurea do período e o Cinquecento (séc. XVI), fim do Renascimento e
transição para o Maneirismo e o Barroco.
É
sobre o Trecento, que deu seus primeiros passos em Florença, que
iremos nos debruçar. Florença era polo político, econômico e
cultural da região e esse panorama propiciou e promoveu o
desenvolvimento das atividades de mecenato (patrocínio) e a produção
de grandes obras de arte.
A
influência dos pensamentos revolucionários da época, pautados pelo
que hoje chamamos humanismo e antropocentrismo, posicionando o homem
como “o centro do universo”, além de novos estudos e
descobertas, tanto nas artes quanto nas ciências, começam a
modificar as formas de representações artísticas em geral. É
também nessa época que surgem os novos formatos de texto, como os
ensaios e as biografias.
Para
a execução de uma obra do Antigo ou do Novo Testamento, o pintor do
Trecento (considerado mais um artesão, um simples operário do que
um artista criador propriamente) ainda era orientado e seguia as
regras de como deveria representar os personagens, quais elementos
deveria destacar ou distinguir.
Como ainda não havia o recurso da perspectiva crônica, os elementos mais importantes eram colocados como as maiores figuras do quadro, centralizadas e as demais, em tamanho menor, mas tudo muito “chapado”.
Como ainda não havia o recurso da perspectiva crônica, os elementos mais importantes eram colocados como as maiores figuras do quadro, centralizadas e as demais, em tamanho menor, mas tudo muito “chapado”.
Giotto
di Bondone é considerado o fundador de toda pintura moderna e o pai
da renascença italiana porque – revolucionário – sua arte
rompeu com o estilo linear da era bizantina, libertando a pintura das
formas regulares e quase geométricas desse período.
Inovador,
Giotto começa a pintar as figuras humanas com aspectos individuais e
em situações banais do cotidiano, rompendo com a postura solene e
explicitamente hierárquica que até então existia.
Ele foi o primeiro a quebrar as regras e impressionar pela busca do naturalismo das formas. Talvez nenhum outro artista da Renascença tenha sido mais honesto no esforço de ser simples, direto e o mais verdadeiro possível na descrição da cena, fazendo com que sejamos dominados pela realidade do acontecimento.
Ele foi o primeiro a quebrar as regras e impressionar pela busca do naturalismo das formas. Talvez nenhum outro artista da Renascença tenha sido mais honesto no esforço de ser simples, direto e o mais verdadeiro possível na descrição da cena, fazendo com que sejamos dominados pela realidade do acontecimento.
Ele
ainda não alcançava a representação quase fotográfica (e até em
3D) de seus sucessores do Renascimento (tais como Sandro Botticelli,
Leonardo Da Vinci, Michelangelo Buonarroti e Rafael Sanzio, por
exemplo), mas em comparação à arte bizantina feita até então,
sua ruptura e evolução é visivelmente espantosa.
Sobre
sua vida, sabemos que Giotto Di Bondone nasceu em meados de 1267, na
aldeia de Colle Vespignano, perto de Florença. Era apenas um jovem
pastor de ovelhas que tinha como passatempo fazer esboços de seus
animais, quando um grande mestre da arte, Cimabue, viu seus desenhos
e o convidou a trabalhar em sua oficina.
Em
pouco tempo o jovem superou o mestre e, em 1280 viajaram para Roma,
onde Giotto conheceu o trabalho de Pietro Cavallini, o mais famoso
pintor de afrescos da época. Inspirado, dentre as obras de sua fase
inicial, o enorme crucifixo de cinco metros de altura, a série de
pinturas da Igreja de Santa Maria Novella (em Florença) e os
afrescos da Igreja de São Francisco (em Assis).
Muito
apreciado pelo clero, Giotto executa uma série de afrescos (cores
diluídas em água, aplicadas sobre o reboco ainda fresco) a pedido
do Papa Bonifácio VIII, na Basílica de São João Latrão. Em Roma,
a pedido do Cardeal Jacopo Stefaneschi, em 1311 faz o mosaico para a
Basílica de São Pedro e uma Madona para a igreja de Todos os
Santos, em Florença (os poderosos florentinos faziam questão de
mantê-lo na cidade).
Em
8 de janeiro de 1337, aos 61 anos, Giotto di Bondone morre em
Florença e é enterrado com honras incomuns para um pintor. Amigo de
Dante Alighieri é também homenageado na “Divina Comédia”, em
uma passagem do “Purgatório”, como o artista que superou o
mestre.
Considerando
que estamos na Quaresma, aproximando-nos da Páscoa, contemplemos o
painel “o beijo de Judas”, na Capela Scrovegni (Pádua, no norte
da Itália), onde Giotto nos convida a testemunhar esse momento
crucial da vida Cristo: a traição do amigo.
A capela, dedicada à Virgem da Anunciação, foi erigida e decorada a pedido de Enrico Scrovegni entre os anos de 1303 e 1310, para servir como capela funerária da família e para tentar redimir os pecados do pai, conhecido agiota.
Conta-se que Enrico orgulhava-se de abri-la à visitação pública, exibindo a minuciosa decoração feita por Giotto. Como era de costume na arte bizantina, a abóboda das igrejas eram coloridas de azul e adornadas com estrelas douradas.
O mestre dividiu seu interior em três faixas, com passagens do Antigo Testamento. Em 1304 o Papa Benedito XI concedeu indulgência a todas as pessoas que fizessem peregrinação até ela.
Na cena do “beijo”, rompendo com o convencionalismo estático e estereotipado de sua época, o artista deixa transparecer a fealdade (feiura) da traição no rosto de Judas e também o sentimento de força e coragem para se enfrentar esse desgosto, estampado na face de Cristo.
Os
elementos desse quadro são reduzidos ao mínimo necessário para a
narrativa. Acompanhados dos demais discípulos e também cercados
pelos soldados, Cristo e Judas estão posicionados ao centro,
encarando-se mutuamente, atraindo o foco da atenção.
Jesus é retratado em postura solene, seu semblante é digno e altivo, refletindo a seriedade desse atávico momento.
A
genialidade de Giotto está em criar uma figura clara, que o olho lê
com facilidade e a ação é entendida de imediato, transmitindo o
pensamento e a emoção diretamente por meio das expressões faciais.
Prossigamos desvendando o fantástico e inebriante mundo da arte Renascentista onde, na história, mesmo que a política e a economia ditem as regras, a genialidade dos artistas revela a sublime centelha divina da qual também somos feitos.
Prossigamos desvendando o fantástico e inebriante mundo da arte Renascentista onde, na história, mesmo que a política e a economia ditem as regras, a genialidade dos artistas revela a sublime centelha divina da qual também somos feitos.
Luciene
Felix Lamy
Professora
de Filosofia e Mitologia Greco-romana da
Galleria
Borghese, Roma
lucienefelix.blogspot.com
e-mail:
mitologia@esdc.com