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1 de abr. de 2015

Renascimento: Botticelli e a Virtude da Coragem


Em Florença eclode a Idade de Ouro, legando gênios inimagináveis.


Como vimos no artigo anterior (AQUI), no início do século XIV (1300 em diante), fim da Idade Média, surge o questionamento quanto a religião ser a única fonte de saber e a descoberta de uma realidade para além dos muros da Igreja. É quando o renascentista coloca-se como centro do universo, capaz de ser dono de seu destino, erigindo as bases do que chamamos humanismo.

Já na segunda metade dos anos 1400, com Lorenzo di Médici - O Magnífico - à frente, Florença se torna então o centro mais culto, refinado e de maior potência econômica e política da Itália, florescendo e expandindo o campo das artes, das letras e da filosofia.

Todas essas mudanças bruscas no modo de pensar e ver o mundo estimulou o nascimento de uma forma totalmente nova de expressão artística, algo repleto de vigor, ousadia e frescor.

Uma das características do Renascimento é o que hoje chamamos de interdisciplinariedade que, versátil, dialoga com diversas áreas da ciência e das artes. Vários artistas, além de pintores eram também escultores. Muitos redigiam textos científicos, poesias e dedicavam-se a ourivesaria.

Entretanto, alguns começaram a se especializar em determinada área, buscando o reconhecimento nela (Michelangelo, por exemplo, ansiava firmar-se e ser reconhecido como escultor).

Nesse empenho por se afirmar como profissional “especializado”, o artista vai modificando suas condições de vida. Devido a isso, no período “Quatrocento” do Renascimento, o pagamento por jornada de trabalho vai se restringindo às tarefas puramente artesanais, como as cópias e restaurações.

Com maior reconhecimento, os artistas passam a ser mais exigentes, a ter seus caprichos, impor condições.

Em contrapartida, para não ficar refém de seus humores (vez ou outra abandonavam um trabalho pela metade), tornou-se comum o pedido de um fiador por parte de quem encomendava uma obra, a fim de garantir o cumprimento do contrato.

Nessa fase, o prestígio dos artistas era tanto que eles desfrutavam de liberdade para, além de poder escolher que tipos de obra desejavam executar, qual tema preferiam trabalhar.

Claro que toda essa emancipação passa a exigir a profissionalização das especialidades. E os jovens aprendizes foram levados a ampliar seus conhecimentos, não somente nas oficinas, mas nas Academias que proporcionavam o aprofundamento nos estudos de anatomia, geometria e perspectiva, por exemplo.

Os artistas se sentiam mais livres, pois menos reféns da Igreja: agora, eles contavam também com o patrocínio das ricas famílias, pois “cacife” para bancar e manter filósofos, músicos por perto era a nova “régua” com a qual os poderosos se mediam entre si, reivindicando “nobreza”. Foi então que a mitologia grega, as grandes batalhas e as alegorias se tornaram os temas prediletos.

Também era praxe a encomenda de pinturas que retratassem o casamento de um filho ou a imagem da filha, a fim de despertar curiosidade, rumores e, quem sabe, a conquista do clássico “bom partido”. Sem falar das cenas cotidianas, onde queriam se mostrar aos demais ostentando a opulência de que estavam cercados.

Simonetta Vespucci foi casada com Marco Vespucci, primo do famoso navegador Américo Vespucci. Era considerada a mulher mais bela de Florença e serviu de modelo para as duas mais famosas obras de Botticelli. Dizem que foi amante de Giuliano, irmão caçula de Lorenzo di Médici. A tuberculose a ceifou bem jovem, com apenas 23 anos.


Se com a Igreja o “divino” é o que inspirava e estava por trás das obras, com o mecenato (sistema de proteção e incentivo dado pelas ricas famílias patrocinando-os), o artista ganha mais autonomia e reivindica sua individualidade, sua originalidade, passando a assinar suas obras. Era o início do que hoje chamamos de propriedade intelectual. E, vaidosos, eles travaram verdadeiras batalhas entre si, competindo por maior reconhecimento de sua genialidade.

Ainda sobre o mecenato, atividade que se iniciou no Renascimento e é exercida até hoje por pessoas físicas ou jurídicas, deriva seu nome de Caio Mecenas (68 a.C. – 8 a.C.), ministro e conselheiro que apoiava a produção artística de sua época, formando um círculo de intelectuais e poetas.

Tamanho apreço e investimento legou uma considerável coleção artística secular, não somente em pinturas e esculturas, mas também em bordados, tapeçarias, vitrais, adornos, joias, murais e objetos domésticos, como bandejas, espelhos, camas, arcas, vasos, etc.




Com toda essa avalanche de propostas de requinte e beleza, o papel da arte na sociedade transcende o caráter meramente estético ou funcional, ganha respeito, passando a gozar de muito prestígio e valor. Por isso, é também no “Quatrocento” que surge a figura do colecionador.




Alessandro Mariano di Vanni Filipepi nasceu em 1º de março de 1445, numa família de artesãos florentinos (seu pai era também curtidor de peles). Ainda menino, logo cedo aprendeu a profissão de ourives, mas descobriu que seu talento era mesmo a pintura.

Com 17 anos foi estudar com Fra Filippo Lippi, um dos grandes mestres florentinos que influenciou muito suas primeiras obras. Apesar da boa relação com esse mestre, o aprendiz parte em busca de sua independência e, com ajuda financeira de seu pai, monta seu próprio ateliê.


Foi nessa época que Lorenzo di Médici buscava pintores para ornar o salão do Tribunal da Mercanzia, com o tema das Sete Virtudes. O irmão de Botticelli, Antônio Filipepi, que era ourives, viu nisso uma oportunidade de introduzir o jovem no mecenato dos Médici. Com a ajuda de Tommaso Soderini, pessoa de confiança de Lorenzo, o jovem Sandro recebe então, a incumbência de retratar a Virtude da Coragem.


Alegoria da Virtude da Coragem, de Botticelli (1470), Galleria degli Ufizzi, Florença.


Ele agarrou a oportunidade com pincéis, unhas e dentes e, graças a seu empenho, esse trabalho (alegoria da virtude da Coragem) se mostrou superior às demais. Confira a análise de famosas obras de Botticeli logo abaixo.


Detalhe da Virtude da Coragem, de Botticelli (1470), Galleria degli Ufizzi, Florença.


Depois disso, ele ganhou a confiança de Lorenzo e passou a trabalhar regularmente para a família Médici. À partir de então, além de qualidade seu trabalho também tinha visibilidade e o que lhe abriu as portas para encomendas de outras abastadas famílias florentinas.

Botticelli, que se inspirava nos temas pagãos e seus deuses (Mercúrio, Vênus, Marte, Apolo, Diana, Minerva, etc), também se dedicou às obras cristãs. Mas sempre mantendo seu compromisso com os Médici, reproduzindo os rostos de vários membros da família até mesmo em suas obras religiosas.

Roma também se encantou e quis o artista para suas obras. Ele angaria prestígio e reconhecimento a ponto do papa Sixto IV convidá-lo a trabalhar na Capela Sistina.



"A tentação de Cristo", de Sandro Botticelli (1481-82). Museu do Vaticano, Roma.


Detalhe da "Tentação de Cristo", Museu do Vaticano, Roma.


A morte de Lorenzo de Médici, em 1492, foi seguida de grande agitação política e religiosa. O conflito entre a Igreja e o frei Savonarola (perseguido e queimado numa fogueira por heresia) inspirou Botticelli a retratar os mártires cristãos em suas lutas, sofrimentos e abnegações.


Detalhe da obra "A calúnia de Apeles" (1495), Botticelli retrata a fealdade (feiúra) de uma anciã maltrapilha (numa alusão à Igreja) voltando sua face à verdade nua e crua, que aponta para os céus. Galleria degli Ufizzi, Florença.



Conhecido por seu fantástico bom humor (nem mesmo a acusação anônima de que mantinha casos amorosos com seus aprendizes o abalou), Botticelli fica arrasado com a morte de Savonarola e se afasta da vida pública, passando a se dedicar aos estudos e à meditação. E foi assim, recluso e solitário, que em 17 de maio de 1510, ele faleceu em Florença.

A perseguição pelo ideal de beleza e glória é marca do Renascimento. Prossigamos nessa ascese.


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Coroação da Virgem Nossa Senhora da Assunção (1481-83). Galleria degli Ufizzi, Florença.

Detalhe da coroação da Virgem Nossa Senhora da Assunção (1481-83). Galleria degli Ufizzi, Florença.



A primavera...


A alegoria da Primavera (1472-73), de Sandro Botticelli. Galleria degli Ufizzi, Florença. Botticelli foi o primeiro a trazer um tema exclusivamente mitológico. Posteriormente, a admiração pela Antiguidade clássica, pela civilização grega antiga será uma das características básicas da Renascença.



As duas obras mais famosas de Botticelli são “A Primavera” e “O nascimento de Vênus”, encomendadas pelos Médici (Galleria degli Uffizi).

“A Primavera” é considerada mais intensa e, portanto, superior ao “Nascimento” foi destinada originalmente para a Villa di Castello, residência de verão da família Médici. É considerado um dos mais belos da Renascença italiana.

Nessa composição, Botticelli explicita sua característica de fuga intencional de forma realista. Segundo o estudioso Adriano Colangelo, com sensibilidade quase lírica, ele é um criador de linhas rítmicas e melodiosas extraordinárias, com uma originalidade expressiva ao abordar o mundo lendário da mitologia grega com uma poética surpreendente.

A obra reflete a habilidade de desenhista de Botticelli, algo fundamental para a arte florentina da época. Com sensibilidade, ele cria uma atmosfera de sonho, de fábula, sobre as quais se movimentam imagens fantásticas, fora de qualquer tempo, evocando divindades lendárias pagãs, como se fossem de um maravilhoso mundo desconhecido.

De fato, observamos que as figuras – de uma beleza perturbadora –, emergem quase que de improviso, evocando divindades da terra, do vento e das florestas, distribuindo flores, folhas e ar puro.

O gesticular de todas as figuras é delicado, elegante, rítmico e sintetizam o ideal físico e ao mesmo tempo universal de beleza.

São seis figuras femininas, duas masculinas e um Cupido (Eros) numa plantação de laranjas entre centenas de espécies de plantas e mais de uma centena de tipos de flores. O quadro talvez tenha sido inspirado por um poema de Ovídio sobre a chegada da Primavera.

Vamos à leitura da imagem, da direita para a esquerda: Zéfiro, o vento cortante de março, retratado num tom azul acinzentado e com asas, sequestra e possui a ninfa Flora (conhecida pelos gregos como Clóris), que usa uma diáfana túnica, transparente como um véu.

Zéfiro com Primavera (que na verdade é a ninfa Flora, conhecida pelos gregos como Clóris)


As bochechas de Zéfiro estão inchadas e, por ser a divindade “invisível” que é, seu diferente espectro separa-o dos demais.

As árvores ao redor dele também sopram em sua direção, assim como na túnica de Flora, que ele está soerguendo enquanto flores e folhas frescas surgem de seus lábios. Flora era muito venerada entre os Sabinos, que levaram seu culto a Roma.

Conta-se que depois de arrebatá-la, Zéfiro fez dela sua esposa, conservando-a no esplendor da juventude e presenteando-a com o império das flores. Ele a torna então, deusa da Primavera, portadora da vida eterna, a espalhar rosas pelo chão. É por isso que os poetas costumam inserir o casal no cortejo da Primavera.

Observem que Primavera possui um abdome proeminente por baixo do vestido, como que indicando algo que lhe é mesmo tão peculiar: a germinação.


A Primavera é essa figura feminina coroada de flores num vestido de estampa também floral a espalhar rosas, recolhidas nas dobras do seu vestido, representando a mais bela estação do ano.


Detalhes das flores na obra "A primavera", de Sandro Botticelli.


Segundo Cunningham e Reich, a obra é uma elaborada alegoria mitológica da fertilidade florescente do mundo.


A exaltação ao máximo do ideal de beleza como o ponto alto de um sonho é plenamente realizado no Renascimento florentino através de Botticelli.

Em destaque, pois centralizada e visivelmente acima das outras figuras está uma mulher vestida de branco com um belo manto vermelho de fundo azul. Em seu semblante se observa um plácido olhar de espectadora que abençoa.

As árvores atrás dela formam um arco destacando-a ao centro. Somente ela e Mercúrio portam sandálias. Talvez porque somente Vênus (Afrodite) e Mercúrio (Hermes) sejam deuses da mitologia grega, enquanto os demais, alegorias.

Elas são três: Aglaé (brilhante), Talia (verdejante) e Eufrosina (alegria da alma).

Agrupadas, à esquerda, três graciosas jovens – As três Graças – em trajes branco e diáfano, unem as mãos com delicadeza enquanto dançam de forma sensual e suave.

Segundo o mito, as Graças eram filhas de Eurínome (ou Juno/Hera) e Júpiter (Zeus) ou ainda, noutras versões, de Bacco (Dioniso) e Vênus (Afrodite).

São fiéis companheiras da deusa do amor e da beleza, Vênus (Afrodite), a quem devem a graciosidade, o encanto e todos os atrativos que garantem triunfo. O poder das Graças se estende sobre todos os divertimentos da vida.

Elas dispensam aos seres humanos não somente a boa vontade, a alegria e as boas maneiras, mas também a eloquência e a prudência. Elas presidem ainda os benefícios da gratidão.

Duas das Graças usam colares bem destacados (joias com as cores da família Médici).



As Graças são sempre representadas jovens, castas (pudicas) e elegantes a bailar. Os artistas as retratam nuas ou envoltas em túnicas leves, como véus flutuantes. Elas partilhavam também as honras que se rendia ao Amor, personificado por Vênus (Afrodite), a Mercúrio (Hermes) e às Musas.

A flechada desse inocente "anjinho" arrebata qualquer um, podendo nos alçar, imediatamente, ao paraíso.

Um cupido (Eros) bem rechonchudinho sobrevoa sua “mãe”, Vênus (Afrodite) e, de olhos vendados (como sabemos, o Amor é cego), aponta sua flecha para as Graças que, alheias a essa ameaça, bailam tranquila e delicadamente.


O caduceu de Mercúrio (Hermes) mantém o jardim seguro de nuvens ameaçadoras. Ele traja uma túnica de cor chamativa, transpassada por um cinturão que sustenta sua espada, as famosas sandálias aladas e o elmo que o torna invisível. Seu corpo revela estar displicente e despreocupado, entretanto, atento aos céus.

Botticelli inspirou-se no rosto de Juliano di Médici como modelo para retratar o mensageiro dos deuses, Mercúrio (Hermes, na mitologia grega).

Além de seu significado evidente que é o anúncio da Primavera, essa pintura tem sido interpretada como uma ilustração do amor neoplatônico popularizado entre os Médici, sendo o amor carnal natural representado por Zéfiro (à direita) e a renúncia personificada pelas três Graças e por Mercúrio, voltados para outras coisas.

O nascimento de Vênus...

























"O nascimento de Vênus", de Sandro Botticelli (1483). Galleria degli Ufizzi, Firenze. Segundo relatos, Vênus (Afrodite, no mito grego) surgiu em Páfos, na Ilha de Chipre. Outros dizem que ela pousou em Cítera, próximo à costa sul da Grécia. Ambas as ilhas foram dedicadas a seu culto.

Quando se pensa em beleza, sensualidade e perfeição, basta fechar os olhos e imaginar “O nascimento de Vênus”. Por conta de tamanho lirismo e delicadeza, esse quadro tão sublime, de quase três metros de largura, é considerado um dos símbolos do movimento renascentista.

A cena retrata o momento em que Vênus (Afrodite) surge da água. Segundo o antigo poeta grego Hesíodo, em sua obra “Teogonia” (cerca de 600 a.C.), a esplendorosa deusa do amor e da beleza, a entidade que preside o encontro, a união ou, numa linguagem freudiana, a pulsão de libido, nasce após Saturno (Chronos), o Tempo, ceifar os órgãos genitais de seu pai, o Céu (Ouranós).

Do esperma que fecunda a espuma do mar (aphros), nasce o amor, e do sangue, a vingança (personificadas pelas Eríneas).

Sobre o simbolismo presente na obra, podemos dizer que, enquanto à esquerda temos o casal composto pelo vento Zéfiro e a ninfa Flora, conhecida pelos gregos como Clóris (ele transformará em Primavera) soprando vida e animando a deusa Vênus, do lado direito vemos a alegoria da Hora, que é filha de Têmis, a justiça divina (noutras versões, trata-se da própria Primavera), que se apressa para cobrir-lhe a nudez com um belíssimo manto de flores.

Uma das interpretações é de que assim é o amor, paradoxalmente, sensual e casto. Ou, corpóreo, carnal, mundano e também espiritual, idealizado, platônico.

As laranjeiras por trás da Hora (Primavera) estão carregadas de flores brancas com pontas douradas. E as folhas também trazem nervuras em ouro, assim como o próprio tronco. É como se todo o bosque estivesse imbuído da presença irradiante da deusa do amor e da beleza.

Nas vestes da Hora (Primavera) observamos uma espécie de cinto adornado de rosas e, em torno de seus ombros, uma delicada guirlanda de mirta verde, símbolo do amor eterno.

Todas as figuras parecem flutuar. A concha, na antiguidade grega, era uma metáfora para o órgão genital feminino. Observem também que o autor retrata as ondas próximas à concha fielmente, afastando-se, pinta-as apressadamente em “V”.

É característico de Botticelli pés e mãos expressivos, bem delineados, com dedos longos. O pescoço e os ombros – propositalmente – não seguem as proporções anatômicas reais. Atentemos ao fato de que Afrodite está cercada por duas ações bem distintas: uma que, de certa forma, a desnuda e outra que a vela, certamente impondo pudor.

Botticelli optou pela pose conhecida por “Vênus Pudica” (observe o acanhamento da deusa ao tentar esconder os seios com uma das mãos e a região pubiana com os cabelos). Outros artistas preferiram retratá-la numa pose mais sensual, chamada de “Vênus Anadyomene”, quando ela surge nua, enxugando seus longos cabelos.

Detalhe do rosto de Vênus, cujos traços, segundo os estudiosos, também foram inspirados na mais bela donzela florentina, Simonetta Vespucci.

Representante do ideal de beleza clássica muito admirado no início do Renascimento, em especial nos círculos intelectuais de Florença, a Vênus de Botticelli expressa um olhar longínquo. Segundo Robert Cumming, os rostos pintados por ele parecem recolhidos em seu mundo interior, perdidos em seus pensamentos.

O artista sempre destaca a estrutura óssea sob a pele, maxilares bem marcados e narizes elegantes. No entanto, a severidade dos traços do rosto é abrandada com a suavidade dos ondulados cabelos dourados.


Será que algum outro artista conseguiu expressar com tamanha maestria, lábios tão convidativos a um beijo quanto esses?


Detalhe de uma das rosas presentes no "Nascimento".

Segundo o mito, a rosa, flor consagrada a Vênus, foi criada no seu nascimento e por sua delicada beleza e fragrância, simboliza o amor. A presença de espinhos seria para nos lembrar que ele, o amor, também pode nos ferir.

Marte e Vênus...



Marte e Vênus, de Sandro Botticelli (1483). National Gallery, Londres.

Já nesta obra, numa clareira rodeada de mirtos, quatro faunos (sátiros) ainda crianças brincam com o elmo e a espada do temível deus da guerra, Marte (Ares). Ele está adormecido, estampa na face a sensação cansaço e, desarmado, encontra-se totalmente submisso à deusa do amor e da beleza, Vênus (Afrodite).

Sereno e imperturbável, ele parece entregue a um sono profundo (nem mesmo o trompete do fauno em seu ouvido o desperta), talvez devido à exaustão do ato amoroso. E eis o bélico Marte vulnerável, rendido. Dizem que Botticelli teria se inspirado no rosto do próprio Juliano Médici, para essas pinceladas.

Vênus (Afrodite), que parece uma recatada noiva, de branco com detalhes em dourado arrematado por um broche em forma de flor, contempla o rosto do amado, expressando delicada feminilidade. Seu rosto é todo paz.

Ao observarmos a face de Marte e imediatamente dirigirmos o olhar para a face de Vênus, concluímos que há uma união de opostos que se complementam (sono e vigília), garantindo a felicidade do casal. Entretanto, é ela que, desperta, mantém o controle da situação.

Atentemos ao sublime que Botticelli explicita nessa obra: é com lucidez, toda doçura e delicadeza que mantêm-se total domínio sobre essa violenta divindade. Sim! O amor vence a guerra.

Madonna com o Menino e coro de oito meninos, de Sandro Botticelli (1478). 
Staalich Mussen, Berlin.

Mais uma vez, constatamos a beleza do sublime: nos lírios brancos, na riqueza de detalhes nas vestes do coro de meninos e nos véus da Virgem. O semblante dela é de ternura, seu olhar “perdido”, transmite piedade, compaixão e a mais profunda paz.

Os “fios de ouro” de que são feitos os cabelos, os preciosismos na renda do véu dessa pudica Madonna, são detalhes que nos faz reconhecer o grau de perfeição alcançado por Botticelli.

Detalhe do coro de meninos.

É curioso como Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi ficou conhecido por Sandro Botticelli. Sabemos que Sandro é diminutivo de Alessandro, mas Botticelli é porque “Il Botticello” significa pequeno barril e assim era conhecido um dos irmãos mais velhos de nosso renascentista.

A letra “i” ao final de Botticello surgiu mais tarde e isso porque os estudiosos pensaram que se tratava de um nome de família, como os Médici -, já que na época estes eram geralmente no plural, que em italiano termina em “i”.


Palas Athena (Minerva) e o Centauro (1482). Galleria degli Ufizzi, Florença.

Como esclarecemos, o pioneirismo de Botticelli consiste na ousadia de ter resgatado a cultura pagã, retratando faunos, centauros, deuses e alegorias.

O regresso de Judith a Betulia (1472-1473), Galleria degli Ufizzi, Florença.

Observem que as vestes, tanto de Judith quanto da serva que a acompanha, deixam o abdome “soltinho”, à vontade. Destacar o ventre, aludindo maternidade é comum na moda da época, pois trata-se de um valor positivo para a cultura renascentista.


Perfil do poeta Dante Alighieri, por Sandro Botticelli (1495). Conhecido como "il sommo poeta", o autor de "A Divina Comédia" nasceu em Florença, por volta de 1265 e faleceu de malária em 1321.


Trecho da ilustração sobre o inferno (na Divina Comédia de Dante Alighieri), por Botticelli.


Dedico esse artigo ao Excelentíssimo Senhor Juiz Federal Sérgio Fernando Moro.


Referências Bibliográficas:

O livro da Arte (Editora Martins Fontes)
Para entender a arte - Robert Cumming (Editora Ática)
Renascimento - Coleção Quero Saber (Editora Escala)
Iniciação à História da Arte - H.W. Janson e Anthony F., Janson (Ed. Martins Fontes)


Luciene Felix Lamy
e-mail: mitologia@esdc.com
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Eis que a Sabedoria reina, mas não governa, por isso, quem pensa (no todo) precisa voltar para a caverna, alertar aos amigos. Nós vamos achar que estais louco, mas sabes que cegos estamos nós, prisioneiros acorrentados à escuridão da caverna.

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Nôus: poder de intelecção que está na Alma, segundo Platão, após a diânóia, é a instância que se instaura da deliberação e, conforme valores, escolhe. É o reduto da liberdade humana onde um outro "logistikón" se manifesta. O Amor, Eros, esse "daimon mediatore", entre o Divino (Imortal) e o Humano (Mortal) pode e faz a diferença.

Ser "sem nôus", ser "sem amor" (bom daimon) é ser "sem noção".

A Sábia Mestre: Rachel Gazolla

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O Sábio Mestre: Antonio Medina Rodrigues (1940-2013)

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