Adão, Eva, Caim e Abel, por Francesco Bacchiacca.
“Todos aqueles que
conseguem um objetivo são invejados por aqueles que não o
alcançaram ou falharam.” Aristóteles
Nada revela mais sobre nossa psique que os arquétipos mitológicos,
sejam eles judaico-cristãos ou pagãos. Para compreendermos o que
origina o ressentimento por Abel, desencadeado em Caim, perscrutemos
a relação de Deus para com estes primeiros irmãos.
Os que assemelham-se a nós, um irmão, uma irmã, são sempre um
“outro”, espelho e “régua” com o qual nos autoavaliamos. E,
sabemos que o “medir-se” pode vir a suscitar admiração ou
despertar inveja.
Eva, Caim e Abel por John-William Bouguereau.
O relato bíblico de Caim e Abel culmina num dos pecados à espreita
daqueles que, de alguma forma, se sentem injustiçados pelos pais, os
amigos, o chefe ou até mesmo pelo Juiz do céu e da terra: Deus.
Segundo a narrativa em Gênesis, no Antigo Testamento, Adão
conheceu Eva, sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Caim, e disse:
“Gerei um homem com o auxílio do Senhor”. A seguir, deu também
à luz Abel, irmão de Caim. Abel foi pastor; e Caim, lavrador.
Logo no início, Eva reconhece o auxílio de Deus na geração de
Caim. A seguir, nasce Abel. Do ponto de vista histórico, talvez
tenha havido conflito hierárquico quanto às atividades de
apascentar rebanhos e cultivar a terra, no entanto, ambas as técnicas
são importantes à subsistência.
Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de
frutos da terra. Por seu lado, Abel ofereceu primogênitos do seu
rebanho e as gorduras deles.
Nas culturas antigas, o re-ligare, a religião, estava
intrinsecamente atrelada à manifestação de gratidão por tudo o
que o divino (metafísica), através da terra (física) nos concedia.
O senhor olhou favoravelmente para Abel e para sua oferta, mas não
olhou para Caim nem para sua oferta.
Há distinção – clara! – da parte do 'Pai”, tanto sobre a
oferta em si quanto ao filho que a faz. Talvez houvesse em Abel algo
que agradara ao Criador: humildade. O coração de Abel é puro, Deus
sabe e o corresponde.
O desafio à Caim é reconhecer e aceitar essa deferência ao seu
irmão. Sendo evidente que sempre haverá quem receba maior distinção
que nós, estaria na reação ao favoritismo divino (provação
empreendida por Àquele que nos criou e ao qual estamos submetidos) o
teste da opção pela resignação ou pela revolta, tal qual ocorrera
com o primeiro anjo caído, Lúcifer?
Lúcifer, por Alexandre Carbanel.
Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou-se-lhe. O senhor
disse a Caim: “Por que estás zangado e o teu rosto está abatido?
Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se
procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a
espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas
deves dominá-lo”.
No momento em que testemunha o olhar favorável às dádivas de Abel,
Caim começa a invejá-lo, pois como atesta a psicanalista Melanie
Klein: “A inveja sofre ao ver o outro possuir o que ela quer para
si”. Sentindo-se preterido, Caim fica irritado e, uma vez que “a
destrutividade da inveja recai sobre quem a sente”, a fisionomia o
denuncia.
Embora onisciente, Deus pergunta-lhe o por quê de estar abatido e o
orienta sobre o fato de que SE AGIR BEM, voltará a erguer o rosto,
numa clara alusão ao (re)encontro Dele, que está nas alturas.
Afirma a existência do pecado, que se inclina à Caim e sobre o
dever de dominá-lo. O mal espreita o vaidoso que, em seu orgulho,
exige equidade, imparcialidade: “A inveja é uma paixão
relacionada à busca de uma idealizada igualdade entre os homens”,
afirma Klein.
Seria essa exigência de igualdade lícita e democrática se houvesse
paridade nos sentimentos e nas ações de todos, o que sabemos ser
implausível.
Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: “Vamos ao campo”.
Porém, logo que chegaram ao campo, Caim lançou-se sobre o irmão e
matou-o.
Caim e Abel, por Pietro Novelli (1603-1647).
Mesmo tendo sido alertado sobre a necessidade de dominar a tentação
para proceder mal, Caim sucumbe, e consuma na prática o que já
fizera em pensamento: mata seu irmão.
O Senhor disse a Caim: “Onde está Abel, teu irmão?” Caim
respondeu: “Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?”
O Senhor replicou: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão
clama da terra até Mim. De futuro, serás maldito sobre a terra que
abriu a sua boca para beber da tua mão o sangue do teu irmão.
Quando a cultivares, negar-te-á as suas riquezas. Serás vagabundo e
fugitivo sobre a terra.”
Caim amaldiçoado por João Maximiano Mafra (1851).
Deus pergunta por Abel. O assassino – e aqui, desde que os homens
caminham sobre a terra – não há nenhuma novidade – nega saber
dele. “A voz do sangue” é ouvida por Deus.
Pelo crime perpetrado contra seu irmão, Caim é amaldiçoado,
obstada fica sua prosperidade (eis a miséria atrelada ao castigo). É
condenado a vagabundear vivenciando a aflição de ser fugitivo, sem
paz.
Caim disse ao Senhor: “O meu castigo é excessivamente grande
para ser suportado. Expulsas-me hoje desta terra: obrigado a
ocultar-me longe da Tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo
pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á”.
Caim reconhece o quão pesada é a pena a cumprir. Sente-se obrigado
a ocultar-se, longe da face de Deus que, luminosa, não é
contemplada pelo pecador. Também presume vir a ser vítima do mesmo
crime que perpetrou.
Louis-Ernest
Barrias (1841-1905). "Les Premières funérailles", 1883. Museu de Belas Artes de Buenos Aires, Argentina.
O Senhor respondeu: “Não, se alguém matar Caim será castigado
sete vezes mais”. E o senhor marcou-o com um sinal, a fim de nunca
ser morto por quem o viesse a encontrar. Caim afastou-se da presença
do Senhor e foi residir na região de Nod, ao oriente do Éden.
O relato encerra-se com a misericórdia divina, pois Caim foi marcado
com um sinal que poupará sua vida.
O sinal de Deus sobre Caim tem sido apropriado e perversamente
distorcido por muitos que arrogam para si uma suposta superioridade
sobre os demais, ousando perpetrar e justificar a barbárie. O sinal
não está nos judeus, como outrora aventou Santo Agostinho, tampouco
nos negros, como simpatizam os racistas. Indelével no precursor de
toda humanidade é a culpa, fruto de nossa dívida eterna para com o
Criador.
Não sejamos coniventes com o fomento do MAL que –, valendo-se de
nossa inerente vaidade (se não
o fôssemos, não invejaríamos) – mesmo ardiloso e sorrateiro, não
deixa de ser perscrutável.
Precipuamente inclinados ao
pecado, permitir que a inveja faça morada em nossos corações, não
consuma – necessariamente –, homicídios, mas formas rasteiras
de agressão ao invejado, tais como fofoca e discórdia, provocando
intrigas.
Agindo assim, com a culpa de
saber-se invejoso, instaura-se o desassossego. Ao decidirmos proceder
bem, não nos inquietando pelas benesses recebidas pelos demais,
erguemos com altivez nosso rosto ao Eterno. E, mesmo que não crentes
em nenhuma religião, às estrelas, ao sol… à LUZ!
Imagem de Duccio di Buoninsegna
(1308-1311).
Na quarta-feira de cinzas, inicia-se a Quaresma. Com a Fé em Cristo, vençamos o Mal, que nos afeta ainda mais quando recai sobre nossos ascendentes e descendentes.
Exorcismo de São Bento: "Crux Sacra Sihi
mihi lux; non draco sihi mihi dux; vade retro satana!; nunquan suad mihi vana; sunt mala quae libas; ipse venena bibas".
Tradução: "A
Cruz sagrada seja a minha Luz. Não seja o Dragão meu guia. Retira-te
Satanás! Nunca me aconselhes coisas vãs. É mal o que tu me ofereces.
Bebe tu mesmo do teu veneno!".
A QUEM INTERESSAR:
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